Dez anos depois do fim da CLT
por Átila de Rold Roesler
Jornal GGN – Em artigo
para o Justificando, o juiz do trabalho, Átila da Rold Roesler, faz um
exercício e se imagina no futuro, em 2027, dez anos depois do fim da
CLT. “Na verdade, nem consigo lembrar direito como retiramos
flexibilizamos todo o direito do trabalho ou driblamos a Constituição
Federal. Não sei se foi aos poucos, não sei se foi com uma ruptura
abrupta ou se foi um golpe. Mas não importa. Conseguimos, enfim”.
“Mas algo deu errado. Nesse tempo, vimos
surgir bancos sem bancários, hospitais sem médicos, escolas sem
professores, companhias aéreas sem pilotos/comandantes, empresas sem
empregados, fazendas sem trabalhadores rurais, Estado sem funcionalismo
público. Após sucessivas reformas, acompanhamos inertes a Previdência
Social ser reduzida ao mínimo existencial. A educação e a saúde pública
foram privatizadas. O salário dos trabalhadores baixou a um nível
indecente por conta da precarização sem limites. Crianças e adolescentes
voltaram a trabalhar para complementar a renda da família. No campo, se
trabalhava apenas por comida e teto. Os pobres se tornaram miseráveis,
desfalecidos. Depois, assustados, vimos a classe média despencar para o
fundo do abismo e o consumo de bens e serviços cair vertiginosamente. O
emprego foi reduzido a nada”.
Abaixo, a íntegra do artigo:
Do Justificando
Por Átila da Rold Roesler
“Precários nos querem, rebeldes nos terão” (autor desconhecido).
Brasil, 2027. Já se passaram mais de dez
anos desde que sepultamos-precarizamos os direitos trabalhistas nesse
país de tamanho continental e de graves desigualdades regionais.
Estávamos absolutamente certos de que era o melhor a ser feito. Na
época, a crise econômica era grave e não havia outra solução: o
desemprego era grande e só aumentava, mês após mês, tampouco tínhamos
qualquer expectativa de melhora. O “pato” chegou à conclusão de que a
culpa de tudo isso era do direito do trabalho, da “velha CLT” e daquela
“justiçazinha atrevida” que se dizia “especializada” e ousava se postar
corajosamente em defesa dos chamados “direitos sociais”.
Ah, é claro...
havia uma Constituição rígida que dificultava a retirada desses direitos
ditos “fundamentais”. Mas ela já não valia mais nada, era um sonho que
nunca vingou, um espectro a nos iludir, um pedaço de papel que ninguém
conhecia. Estava lá e não estava lá. Importava menos do que uma lei
ordinária qualquer, muito menos do que um acordo coletivo. Nós dizíamos
que a “liberdade” de contratação libertava o indivíduo e revelava a sua
plena autonomia nas relações sociais e jurídicas. Acho que esse era o
“espírito” da época.
Na verdade, nem consigo lembrar direito como
retiramos flexibilizamos todo o direito do trabalho ou driblamos a
Constituição Federal. Não sei se foi aos poucos, não sei se foi com uma
ruptura abrupta ou se foi um golpe. Mas não importa. Conseguimos, enfim.
Mas algo deu errado. Nesse tempo, vimos
surgir bancos sem bancários, hospitais sem médicos, escolas sem
professores, companhias aéreas sem pilotos/comandantes, empresas sem
empregados, fazendas sem trabalhadores rurais, Estado sem funcionalismo
público. Após sucessivas reformas, acompanhamos inertes a Previdência
Social ser reduzida ao mínimo existencial. A educação e a saúde pública
foram privatizadas. O salário dos trabalhadores baixou a um nível
indecente por conta da precarização sem limites. Crianças e adolescentes
voltaram a trabalhar para complementar a renda da família. No campo, se
trabalhava apenas por comida e teto. Os pobres se tornaram miseráveis,
desfalecidos. Depois, assustados, vimos a classe média despencar para o
fundo do abismo e o consumo de bens e serviços cair vertiginosamente. O
emprego foi reduzido a nada.
Fizemos de tudo e a crise econômica não
diminuiu, só aprofundou. Trabalhadores e pequenos empresários acabaram
sendo triturados diante da investida do capitalismo selvagem do tipo
“walmartismo”[1] praticado por grandes empresas multinacionais. A era da
precarização tinha chegado ao fim. Iniciava-se outra.
Nesse período, o aparato policial do
Estado aumentou assustadoramente, a segurança privada ganhou espaço
significativo, milícias foram legalizadas, leis penais mais rígidas
foram aprovadas no Congresso, processos criminais ganharam prioridade de
julgamento, o devido processo legal foi mitigado, advogados
perseguidos, prisões foram construídas e privatizadas e o controle
social da população se tornou necessário para impedir a desordem e
garantir o progresso do país. Vigilância em nossas ruas e avenidas,
drones, policiais-robôs. Ainda assim, aplaudíamos.
Apesar de tudo isso, a violência
continuou a aumentar significativamente: furtos, roubos, contravenções,
drogas, intolerância, atentados, revoltas, tumultos, crimes
cibernéticos. A situação era caótica nas cidades e no campo. Tudo
parecia estar fora de controle. O desespero tomava conta da sociedade,
pois não havia crescimento econômico, a crise se agravava e grande parte
da população brasileira passava fome como outrora. Então, quando
festejamos aretirada completa de direitos fundamentais as reformas
trabalhistas pensando que avançaríamos, na verdade, acabamos
retrocedendo mais de um século em nossas relações sociais. Nesse
contexto desesperador, outro espectro há muito desaparecido rondava o
Brasil de 2027. E ele parecia incontrolável.
Foi aí que começamos a indagar: “onde erramos?”
Átila Da Rold Roesler é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
[1] A expressão é de Pietro
Basso, utilizada no artigo “O walmartismo no trabalho no início do
século XXI”. Revista Margem Esquerda n. 18, Boitempo Editorial, 2012, p.
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