A maldição dos gêmeos...
Editorial da Agência Carta Capital:
Uma receita para a desigualdade
Os
gêmeos ideológicos e a mídia complacente desconversam sobre os efeitos
indigestos da receita que anunciam como se fosse um biscoito fino para o
país.
por: Saul Leblon
O conservadorismo costuma se
declarar vítima do maniqueísmo que regularmente carimbaria na testa de
seus candidatos rótulos depreciativos aos olhos da população.Elitistas e entreguistas, por exemplo.O
problema real parece ser outro. Candidaturas conservadoras mostram
dificuldade para conciliar o discurso de palanque com a identidade do
projeto que defendem para o país.Na história recente tornou-se emblemático o caso do governador Geraldo Alckmin.Presidenciável
tucano em 2006, ele se fantasiou com adesivos de estatais brasileiras
na vã tentativa de afastar compreensíveis suspeitas do eleitor.Convenceu tanto quanto o lobo vestido de vovozinha na história da Chapeuzinho Vermelho. Ou
então Serra. Em 2010, já descendo a ladeira, aliado ao humanista bispo
Malafaia para atacar gays, aborto e petistas, o tucano chegou a acenar
com um gesto generoso.O governo propunha então R$ 538 reais para
o salario mínimo válido a partir de 2011, um valor calculado conforme a
regra pactuada com CUT e sindicatos quatro anos antes. ‘Acho pouco’, disse o tucano e sapecou: ‘Vou fixar em R$ 600 reais’ (veja aqui: www.youtube.com/watch?v=qzyOIv--uKw).Não contente, prometeu um aumento de 10% para os aposentados.E
arrematou com o compromisso de incluir 15 milhões no Bolsa Família (o
programa reunia então 12,3 milhões; hoje são 13, 8 milhões), ademais
de assegurar um 13º pagamento a todos os beneficiados.Digamos que Dilma tomasse decisão semelhante hoje.O
que diriam os centuriões do equilíbrio fiscal que saíram de faca na
boca diante do reajuste de 10% para o Bolsa Família, somado à correção
da tabela do IR, ambos anunciados no discurso presidencial do 1º de
Maio?No caso de Serra, zumbiu um silencio obsequioso.Inútil.A credibilidade do discurso tucano não superou as desconfianças entranhadas no personagem.O
resultado é sabido: Dilma venceu as eleições de 2010, no 2º turno, por
uma diferença de mais de 10 milhões de votos sobre o delfim do
conservadorismo.Tome-se agora o caso dos gêmeos ideológicos, Aécio & Eduardo.Ambos querem devolver aos mercados o comando do país.Há diferenças de estilo, mas nisso são univitelinos.Em linguagem explícita ou cifrada vão alternando, como num jogral, detalhes de como se faz esse cozido de uma Nação.Junte
um Banco Central independente (da sociedade), a um choque de juros;
acrescente mais duas voltas de arrocho com um superávit de 3,5%. Pique a
meta da inflação ao gosto dos rentistas. Depois misture tudo com a
batedeira da liberdade irrestrita aos capitais; leve ao forno da
abertura comercial plena, geral e irrestrita.Sirva fervendo.Só falta explicitar à opinião pública os custos de cada ingrediente.Colunistas isentos (ideológicos são os blogueiros ) adornam a omissão com uma condescendência melosa e enjoativa.A
exemplo do que fizeram com Serra não arguem o preço social e
estratégica do cardápio maturado na cozinha dos gêmeos ideológicos.Coube à Presidenta Dilma quebrar o segredo culinário nesta 3ª feira, ao calcular aquilo que se omite deliberadamente:‘Baixar
a meta da inflação para 3% (como querem os gêmeos) jogaria 8,2% dos
trabalhadores no desemprego’, advertiu escancarando a linha tênue que
separa o salitre impopular do lacto purga antipopular.Preguiçosa
nos cálculos quando se trata de escarafunchar a cozinha
conservadora, a mídia reagiu celeremente ao discurso do 1º de Maio.Manchetes
faiscantes denunciavam no dia seguinte a ‘gastança’: R$ 8,9 bi vai
custar o reajuste de 10% para o Bolsa Família e a correção da tabela do
IR.A assimetria da reação reflete uma divergência de prioridades.Um
aumento anterior de impostos providenciado pelo governo, sobre cervejas
e refrigerantes, custeará quase a metade da despesa anunciada no 1º de
Maio (R$ 3,6 bi).O mercado financeiro reagiu inconsolável.Do
Itaú, o Banco Central tucano, veio a explicação: ‘esperava-se que a
receita extra fosse cobrir despesas das elétricas para não prejudicar
ainda mais o superávit de 2014’.Em bom português: teme-se que a
hidráulica fiscal vire o registro para subtrair água dos que já tem a
caixa cheia, em benefício de que vivem de gota em gota. Só no 1º trimestre deste ano, por exemplo, R$ 13,048 bilhões foram adicionados à caixa dos rentistas da dívida interna.O volume poderia ser significativamente menor se o registro dos juros girasse para baixo.O
Brasil paga o terceiro juro real mais alto do mundo, cerca de 5%,
depois de uma queda de braço em que Dilma conseguiu, momentaneamente,
trazer para 3,5%, uma taxa real que foi da ordem de 11,5%, em média, no
segundo governo Lula e de 18,5% na média do segundo governo FHC.As medidas que os gêmeos ideológicos listam para o país requisitam um cavalo de pau nessa trajetória descendente.Com elevado risco de retornos pífios em relação aos seus próprios objetivos.É
o que demonstra o pulso agonizante de países europeus que desde a crise
de 2008 vem sendo tratados com o receituário que Aécio & Eduardo
querem agora ministrar aqui.Vejamos.Depois de três anos
de arrocho, que decepou 7% de sua economia, a dívida pública em
Portugal saltou de 108% para 129% do PIB. O desemprego médio passa de
15%; e supera os 30% entre os jovens.Na Espanha, que começou o
arrocho antes do vizinho ibérico, ainda com o PSOE, e o aprofundou com a
chegada da direita ao poder, em 2011, o quadro é ainda mais sombrio. A ponto de o país registrar um déficit fiscal que é quase o dobro daquele anterior à crise.O arrocho congelou a economia e decepou a receita do governo. A recessão fez o resto e tornou a crise autossustentável.Há quase seis milhões de desempregados na Espanha (24% da força de trabalho)A população ativa encolhe mês a mês pela desistência pura e simples de se procurar o que não tem: emprego.Hoje
ela é inferior à existente há seis anos --evolução semelhante a uma
situação de guerra, quando os adultos em idade produtiva, jovens,
sobretudo, vão para os campos de batalha e não retornam.Na Espanha eles estão indo às filas de embarque .A
taxa de desemprego na juventude espanhola passa de 55%. Significa que
metade de uma geração inteira talvez nunca encontre trabalho em sua
terra.Pior só a Grécia.Seis de cada 10 jovens gregos
estão desempregados e cerca de 4 milhões dos seus 11 milhões de
habitantes vivem em um labirinto de pobreza e exclusão.Há seis
anos sob implacável terapia de arrocho, o país perdeu 25% de seu PIB. Em
compensação, a taxa de suicídio aumentou 45% desde 2007.O conservadorismo sabe as consequências da receita que preconiza para o Brasil.O
colunismo especializado, que encena esclarecimento diante do livro de
Thomas Piketty (‘ O Capital no Século XXI’), tem a exata dimensão do que
está em jogo. Está em jogo assegurar aos endinheirados uma fatia
da riqueza crescentemente superior ao desempenho médio da economia.
Exatamente o traço forte do capitalismo atual denunciado minuciosamente
por Piketty.Ao fixar essa estaca, a conta de chegar não fecha para o resto da sociedade.O capitalismo assume a sua genética como usina imbatível de assimetrias sociais. Ou não será exatamente essa a raiz da desordem europeia nos dias que correm? Rentistas
e banqueiros (alemães, sobretudo) festejam a ‘retomada’, laços sociais
se desintegram e a extrema direita colhe os frutos desesperados da
pobreza e do desemprego propondo uma ordem policial contra a anomia
neoliberal.Os gêmeos ideológicos e a mídia complacente
desconversam sobre os efeitos indigestos da receita que anunciam como
biscoito fino para o país.Apenas os mais afoitos admitem que o segredo da massa remonta a uma tradição que vem da casa grande no trato com a senzala.Trata-se da receita da desigualdade, segundo a qual , para uma sociedade avançar , é preciso o seu povo regredir.