Mais um bom relato sobre a "Murcha" da Família com Deus pela Ditabranda" em São Paulo:
Crônica
Por: Laura Capriglione
Marcha tem apelo à tortura e 'Caça aos Corruptos'
Diferentemente do ato original, nem Deus nem a
família compareceram desta vez, com a exceção de dois seminaristas
imberbes
Fotos: Joseh Silva
Deus não deu o ar da graça na Marcha Com Deus
pela Família e a Liberdade 2, realizada no sábado 22 em São Paulo. Se há
cinquenta anos a Marcha original contra o comunismo e o governo do
presidente João Goulart (1919-1976) contou com o apoio militante dos
hierarcas católicos, secundados por milhares de mulheres rezando o
terço, a de 2014, contra o PT, Dilma, Lula e, é claro, o comunismo, teve
de se contentar com dois seminaristas imberbes – as duas únicas batina
vistas —, uma réplica em resina da imagem de Nossa Senhora Aparecida e
um pôster barato de Nossa Senhora de Fátima.
A Família brasileira também faltou. Em 1964, centenas de milhares estavam presentes na Marcha. Desta vez, se muito, foi uma marchinha. Segundo a Polícia Militar, cerca de 500 manifestantes reuniram-se na Praça da República (centro de São Paulo), de onde saíram em caminhada para a Praça da Sé. “Dilma e Lula vão pra Cuba que os Pariu”, rezava uma faixa.
Não faltou, entretanto, fervor, fantasia e gritaria. Tinha advogado de PM que participou do Massacre do Carandiru protestando contra uma tal “emasculação da polícia pretendida pelo PT”, militante anti-aborto e anti-gay da organização Pró-Vida (“o PT odeia a família”), homens de terno com aventalzinho (eram maçons golpistas), gente embrulhada em bandeira brasileira, com camisetas militares de camuflagem, carecas (skinheads), uma dupla de lésbicas fascistas com o cabelo corta à la capuchinho (elas não explicavam por quê), homens vestidos de caubóis texanos (chapelão e botas).
“Intervenção Militar Já” repetiam os oradores da manifestação, que se desfaziam em aplausos e gritos de apoio ao ver o helicóptero da Polícia Militar sobrevoando seu grupo. Ou quando um militar da reserva subia ao palanque para uma peroração anticomunista.
Como a que fez o coronel Ricardo Jacob, da reserva da PM, um dos mais aplaudidos da marchinha, defensor da tortura como método de obtenção de informações: “Porque, na moral, falando, conversando, ninguém fala a verdade”.
Amanda de Jesus Almeida, de 23 anos, estudante de ciências contábeis, lamentou não conhecer o hit parade do hinário cívico brasileiro, ali tocado à exaustão. Diante do Hino da Independência, o “Já Podeis da Pátria Filhos”, ela, que não sabia a letra, reclamava do “nível de ensino”. “Eu não tive aulas de Educação Moral e Cívica. Hoje, nas escolas, a juventude só aprende a ser gay, ateu e a fazer aborto”.
A falta de gente era compensada pela sonzeira que vinha de caixas acústicas poderosas, instaladas em um ônibus pintado de preto e em um trio elétrico igualmente pintado de preto. Repórteres cobrindo a manifestação apelidaram os dois veículos de “caveirões”, alusão aos veículos blindados usados pelo Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar, a Tropa de Elite do Rio.
E parecia mesmo. Decorava um dos veículos uma enorme faixa verde e amarela em que se via uma caveira sinistra, sorrindo. Atravessada por dois rifles, a imagem da morte ainda ostentava boina militar bordada com as letras CCC.
Para quem não sabe, CCC é o nome de um organização de extrema-direita que ficou famosa durante a ditadura como tropa de assalto. Em 1968, por exemplo, invadiu e espancou o elenco do espetáculo Roda Viva, que estava em cartaz no Teatro Ruth Escobar. O CCC original queria dizer Comando de Caça aos Comunistas. O de ontem era traduzido por Comando de Caça aos Corruptos.
Foram cerca de 20 execuções do hino nacional, incluindo uma versão em ritmo de forró em um trajeto 1.900 metros entre a República e a Sé. “Não existe nada mais lindo do que isso”, repetia o apresentador do evento, de cima do caveirão.
Gabriela Vitória Alexandre de Souza Lima, 18 anos, estudante de gestão comercial da FMU, cantava com os olhos fechados, mão no peito, como em um louvor religioso. Ela foi ao ato levada pelo pastor da Comunidade Evangélica Paz e Bênção, do Jardim Grimaldi (zona leste), que lhe disse que o PT pretende fechar todas as igrejas evangélicas do Brasil. “Tenho certeza de que a Dilma quer fazer isso como forma de calar o povo.”
Na frente da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, o carro de som exumou a marchinha “Eu te amo meu Brasil”, exaltação do chamado “Brasil Grande” pregado durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici. Senhores na casa dos 60 anos voltaram ao baile da escola. “Foi a aurora da minha vida. Ninguém segura a juventude do Brasil”, emocionou-se Cleide Fonseca Brunoro, 65 anos, camiseta militar camuflada, shorts e botinha de salto. Bem iê-iê-iê.
Mas havia um medo no ar. Ali, bem perto, os comunistas – sempre eles –, os vermelhos, os black blocs, os baderneiros, os petralhas, faziam a sua passeata. Chamada “Antifascista” a manifestação dos esquerdistas juntou mil pessoas segundo a PM. O receio era que as duas turmas se encontrassem em algum ponto. Seria pancadaria certa.
A Marcha com Deus tinha a sua tropa privada de proteção. Carecas musculosos, de coturnos, anéis com a imagem da cruz de ferro (símbolo germânico popularizado durante o nazismo), ataduras na mão direita (à moda da proteção usada pelos lutadores de muai thai), carregando grossos canos de ferro na ponta dos quais penduravam-se bandeiras azuis, andavam em formação nos extremos da caminhada da direita.
Comandava-os com gestos bruscos um fortão com o cabelo liso emplastrado de gumex, franjinha para o lado, escovinha atrás. E um bigode. “Hitler veio?”, provocou o professor Gumercindo Almeida, de 35 anos, quando o caveirão subia a rua Xavier de Toledo aos gritos de “Deus, Pátria, Família”.
Foi uma hora tensa. Dois rapazes magros, camisas brancas abotoadas até o pescoço, abriram na frente da passeata uma enorme faixa preta em que se viam letras góticas brancas. Nazistas também? Os fortões carecas foram ver o que estava escrito. E confundiram-se. De trás para diante, como se em um espelho, a faixa dizia “Esta imagem está invertida”. Era um divertido protesto punk antifascista. Os dois foram postos para correr por um armário humano com camiseta em que se lia: “Brigadas Integralistas”.
As duas passeatas não se cruzaram. Mas os punks anarquistas, em sua luta eterna contra os skinheads a quem chamam de fascistas, não deixaram barato. Já na Sé, um dos caveirões instalado em frente à escadaria da igreja, abriu-se a faixa verde e amarela “O Brasil não é colônia de Cuba”.
Foi então que uma garota punk solitária sacou sorrateiramente o spray vermelho e pichou a faixa. Flagrada, foi correria de savana africana, a menina caçada pelos grandalhões carecas. Mas ela escapou. Ufa!
Porta-voz dos carecas, o jornalista, radialista e pastor evangélico Kleber Ricardo, de 40 anos, dizia que seu grupo retirava inspiração nos ensinamentos de Plínio Salgado (1895-1975), representação do fascismo no Brasil. E prometeu que este foi apenas o primeiro ato. “O bebê nasceu hoje”, fazia-lhe coro o locutor de cima do caveirão.
A Família brasileira também faltou. Em 1964, centenas de milhares estavam presentes na Marcha. Desta vez, se muito, foi uma marchinha. Segundo a Polícia Militar, cerca de 500 manifestantes reuniram-se na Praça da República (centro de São Paulo), de onde saíram em caminhada para a Praça da Sé. “Dilma e Lula vão pra Cuba que os Pariu”, rezava uma faixa.
Não faltou, entretanto, fervor, fantasia e gritaria. Tinha advogado de PM que participou do Massacre do Carandiru protestando contra uma tal “emasculação da polícia pretendida pelo PT”, militante anti-aborto e anti-gay da organização Pró-Vida (“o PT odeia a família”), homens de terno com aventalzinho (eram maçons golpistas), gente embrulhada em bandeira brasileira, com camisetas militares de camuflagem, carecas (skinheads), uma dupla de lésbicas fascistas com o cabelo corta à la capuchinho (elas não explicavam por quê), homens vestidos de caubóis texanos (chapelão e botas).
“Intervenção Militar Já” repetiam os oradores da manifestação, que se desfaziam em aplausos e gritos de apoio ao ver o helicóptero da Polícia Militar sobrevoando seu grupo. Ou quando um militar da reserva subia ao palanque para uma peroração anticomunista.
Como a que fez o coronel Ricardo Jacob, da reserva da PM, um dos mais aplaudidos da marchinha, defensor da tortura como método de obtenção de informações: “Porque, na moral, falando, conversando, ninguém fala a verdade”.
Amanda de Jesus Almeida, de 23 anos, estudante de ciências contábeis, lamentou não conhecer o hit parade do hinário cívico brasileiro, ali tocado à exaustão. Diante do Hino da Independência, o “Já Podeis da Pátria Filhos”, ela, que não sabia a letra, reclamava do “nível de ensino”. “Eu não tive aulas de Educação Moral e Cívica. Hoje, nas escolas, a juventude só aprende a ser gay, ateu e a fazer aborto”.
A falta de gente era compensada pela sonzeira que vinha de caixas acústicas poderosas, instaladas em um ônibus pintado de preto e em um trio elétrico igualmente pintado de preto. Repórteres cobrindo a manifestação apelidaram os dois veículos de “caveirões”, alusão aos veículos blindados usados pelo Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar, a Tropa de Elite do Rio.
E parecia mesmo. Decorava um dos veículos uma enorme faixa verde e amarela em que se via uma caveira sinistra, sorrindo. Atravessada por dois rifles, a imagem da morte ainda ostentava boina militar bordada com as letras CCC.
Para quem não sabe, CCC é o nome de um organização de extrema-direita que ficou famosa durante a ditadura como tropa de assalto. Em 1968, por exemplo, invadiu e espancou o elenco do espetáculo Roda Viva, que estava em cartaz no Teatro Ruth Escobar. O CCC original queria dizer Comando de Caça aos Comunistas. O de ontem era traduzido por Comando de Caça aos Corruptos.
Foram cerca de 20 execuções do hino nacional, incluindo uma versão em ritmo de forró em um trajeto 1.900 metros entre a República e a Sé. “Não existe nada mais lindo do que isso”, repetia o apresentador do evento, de cima do caveirão.
Gabriela Vitória Alexandre de Souza Lima, 18 anos, estudante de gestão comercial da FMU, cantava com os olhos fechados, mão no peito, como em um louvor religioso. Ela foi ao ato levada pelo pastor da Comunidade Evangélica Paz e Bênção, do Jardim Grimaldi (zona leste), que lhe disse que o PT pretende fechar todas as igrejas evangélicas do Brasil. “Tenho certeza de que a Dilma quer fazer isso como forma de calar o povo.”
Na frente da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, o carro de som exumou a marchinha “Eu te amo meu Brasil”, exaltação do chamado “Brasil Grande” pregado durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici. Senhores na casa dos 60 anos voltaram ao baile da escola. “Foi a aurora da minha vida. Ninguém segura a juventude do Brasil”, emocionou-se Cleide Fonseca Brunoro, 65 anos, camiseta militar camuflada, shorts e botinha de salto. Bem iê-iê-iê.
Mas havia um medo no ar. Ali, bem perto, os comunistas – sempre eles –, os vermelhos, os black blocs, os baderneiros, os petralhas, faziam a sua passeata. Chamada “Antifascista” a manifestação dos esquerdistas juntou mil pessoas segundo a PM. O receio era que as duas turmas se encontrassem em algum ponto. Seria pancadaria certa.
A Marcha com Deus tinha a sua tropa privada de proteção. Carecas musculosos, de coturnos, anéis com a imagem da cruz de ferro (símbolo germânico popularizado durante o nazismo), ataduras na mão direita (à moda da proteção usada pelos lutadores de muai thai), carregando grossos canos de ferro na ponta dos quais penduravam-se bandeiras azuis, andavam em formação nos extremos da caminhada da direita.
Comandava-os com gestos bruscos um fortão com o cabelo liso emplastrado de gumex, franjinha para o lado, escovinha atrás. E um bigode. “Hitler veio?”, provocou o professor Gumercindo Almeida, de 35 anos, quando o caveirão subia a rua Xavier de Toledo aos gritos de “Deus, Pátria, Família”.
Foi uma hora tensa. Dois rapazes magros, camisas brancas abotoadas até o pescoço, abriram na frente da passeata uma enorme faixa preta em que se viam letras góticas brancas. Nazistas também? Os fortões carecas foram ver o que estava escrito. E confundiram-se. De trás para diante, como se em um espelho, a faixa dizia “Esta imagem está invertida”. Era um divertido protesto punk antifascista. Os dois foram postos para correr por um armário humano com camiseta em que se lia: “Brigadas Integralistas”.
As duas passeatas não se cruzaram. Mas os punks anarquistas, em sua luta eterna contra os skinheads a quem chamam de fascistas, não deixaram barato. Já na Sé, um dos caveirões instalado em frente à escadaria da igreja, abriu-se a faixa verde e amarela “O Brasil não é colônia de Cuba”.
Foi então que uma garota punk solitária sacou sorrateiramente o spray vermelho e pichou a faixa. Flagrada, foi correria de savana africana, a menina caçada pelos grandalhões carecas. Mas ela escapou. Ufa!
Porta-voz dos carecas, o jornalista, radialista e pastor evangélico Kleber Ricardo, de 40 anos, dizia que seu grupo retirava inspiração nos ensinamentos de Plínio Salgado (1895-1975), representação do fascismo no Brasil. E prometeu que este foi apenas o primeiro ato. “O bebê nasceu hoje”, fazia-lhe coro o locutor de cima do caveirão.