Páginas

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Para um bom pit-stop...

“Quando Torcer é um Problema”

 

Nesta terça feira a coluna da jornalista Milly Lacombe, correspondente internacional do Ouro de Tolo, nos traz uma interessante reflexão sobre o ato de torcer a partir da recente demissão do jornalista Flávio Gomes da Espn. Pessoalmente, costumo dizer que me transformo em um cafajeste dentro do Maracanã ou em frente à TV.
Quando Torcer é um Problema
Eu não conheço o Flavio Gomes. Nunca o vi pessoalmente e uma vez tive um entrevero profissional com o irmão dele por aqueles motivos vagabundos que levam duas pessoas a se espezinhar: ego, vaidade, melindre.
Por isso me sinto bastante livre para dizer o que penso da demissão dele da ESPN.
Como amante do futebol, sempre achei o Gomes um dos melhores comentaristas do Brasil. Evidentemente, não concordo com tudo o que ele diz ou escreve – porque não concordo nem com tudo o que eu digo ou escrevo, mas vejo nele, além de um excelente jornalista, um homem apaixonado que não tem medo de se mostrar publicamente com todas as suas sombras e cicatrizes e falhas e miudezas. É o que me encanta, nele ou em qualquer outro: o exagero, o politicamente incorreto, o destempero, o deboche, o humano.
Torcer é perder a cabeça, e sempre me pareceu muito claro que o twitter do Gomes é usado como um espaço no qual ele se permite perder a cabeça, pirar, sair de giro, deixar de ser o jornalista e virar apenas o torcedor. Mas aí é que a gente começa a se complicar porque veio configurado por essa necessidade ancestral de catalogar e rotular, e sem isso não somos capazes de entender onde compartimentar a informação recebida.
Algum de nós, amantes do jogo, torce de forma diferente do que lemos ali? Nem meu pai, um homem que só usava terno e gravata e era incapaz de gritar com outra pessoa, torcia diferente daquilo. Cresci ouvindo meu pai xingar outras torcidas que não fossem a do Fluminense, ofender a mãe de todos os juizes que apitavam jogos que o Fluminense perdia, e sair esmurrando portas depois de uma derrota.
Ah sim, mas fazemos entre amigos, numa mesa de bar, no sofá de casa etc etc etc. Pois é. O Gomes faz publicamente. Ofende. Xinga. Discrimina. Exclui.
E aqui eu preciso fazer a pergunta dura: existe futebol para além dessas quatro linhas?
É uma pergunta de difícil resposta, eu sei. Porque o mundo está violento, intolerante, tosco, preconceituoso e a gente fica tentado a sair moralizando tudo e todos pelo bem das gerações futuras. Mas esse tipo de tentação, se extrapolada, nos teria privado de Nelson Rodrigues, por exemplo, um machista misógino adorável e genial.
Ando cansada de ver o futebol ser banalizado e padronizado (na forma de jogar, nas entrevistas, nos medias trainings, nos comentários, nas análises) e o Gomes – assim como o João Carlos Albuquerque, o Lucio de Castro, o Milton Leite e alguns outros, é essa porta para o que ainda é movido à paixão e à opinião própria.
No twitter dele, essas características são pintadas em cores mais fortes porque acho que ele entendeu que aquele era um espaço que poderia ser usado para isso, subestimando, agora parece claro, a caretice e a moralização do mundo ao nosso redor. Poderia ter se escondido atrás de um fake, criado um outro personagem, mas preferiu fazer de rosto limpo.
Quem lê o blog sabe que ele é muito mais do que o destempero da TL. Quem o vê na TV sabe também que ele não é o doido alucinado do twiter. E quem acompanha a TL sabe que a única torcida que escapa de sua fúria amalucada é a da Portuguesa – e, ainda assim, nem sempre. E deveria saber também que o exagero grosseiro vomitado ali é uma caricatura. Nada disso era novidade para a ESPN, obviamente.
Esse é um mundo de dor que oferece breves intervalos para alegrias, e o futebol é a melhor de todas as metáforas para a vida porque é feito de dor e desespero e angustia mais do que de prazer.
É torcendo que a gente entende que tanto sofrimento vai ser sempre bem vindo porque é ele que nos enobrece. Torcer é aprender a sofrer, a perder, a sangrar. É vendo um jogo que eu posso gritar, me descabelar, me perder, me dilacerar sem ser julgada. Ou era assim porque hoje tem deputado que quer apresentar projeto de lei pelo fim do palavrão no estádio; e todos sabem que sem palavrão não se faz futebol. Nem em campo, nem nas arquibancadas, nem em casa. [1]
Acho que o torcedor tem se levado muito a sério. Cresci sendo chamada de pó de arroz, de fresca, de mimada por causa do Fluminense. Depois, quando incluí o Cornthians na lista de minhas paixões, passei a ser muito mais discriminada por ser corintiana do que por ser gay. Nunca me senti ofendida, a não ser quando, num restaurante, o marido de uma amiga disse: “O Corinthians é um lixo. Um lixo”. Era um restaurante, ele disse isso olhando nos meus olhos e não havia nenhum jogo sendo televisionado. Achei grosseiro e fora e contexto (o contexto, claro, seria estarmos vendo um jogo ou estarmos em uma arquibancada). Foi a única vez em que perdi o humor.
Durante muitos e muitos jogos já gritei contra outras torcidas coisas que deixariam até meu pai assustado. O jogo acaba e eu volto ao normal – ou ao tão normal quanto possível. Mais triste ou mais feliz, mas mais razoável e controlada também. Tenho amigos são-paulinos que querem discutir seriamente, com ótimos e justos argumentos contra a homofobia, o apelido de bambi que a torcida tem. Não é assim que funciona no futebol.
E a única torcida que deu a volta no próprio apelido foi a do Palmeiras quando, genialmente, se apropriou dele e o levou para o seu lado da arquibancada, chamando a si mesma de Porco. Porque tem isso: o humor e a sagacidade nunca vão perder o jogo para o abobado agressor – e todos nós somos abobados agressores aqui e ali. [2]
Nós, os torcedores, precisamos entender que quando o rival diz que corintiano é favelado, desdentado, analfabeto ou que o são-paulino é bambi, é viado, é fresco ele não está com isso manifestando um preconceito; do mesmo jeito que quando xingamos o juiz de filho da puta ou de corno não acreditamos que a mãe dele ganhe dinheiro trepando ou que a mulher dele esteja aprontando.
O futebol é um portal para o incorreto, para o que temos de mais selvagem e pequeno, para o demasiadamente humano em cada um de nós. Se eu grito “juiz viado do cacete” durante o jogo e alguém escuta eu devo ser catalogada como homofóbica? Ou se grito: “seu negão filha da puta” sou racista?  Mandar um “seu argentino escroto” faz de mim uma xenófoba? Ou se uivo “chuta como homem, sua besta desgraçada” sou machista? Se eu disser isso na padaria enquanto tomo uma média e leio o jornal numa manhã de terça-feira, certamente mereço ser interditada. Mas durante um jogo, cega pela paixão, será?
Durante 90 minutos uma partida de futebol comporta o incorreto, a pior versão de nós mesmos; que talvez seja a mais humana delas se considerarmos que somos falhos, e fracos e pequenos e que temos um trilhão de anos e de universos para evoluir.
O que vale para o jogo, não vale para a vida. O fair-play, por exemplo. Quem inventou essa babaquice? O play não é fair nunca porque o futebol é como a vida e a vida não é fair. E fair-play só é fair fair-play se for espontâneo, e não uma obrigação. Igualar na marra o futebol à vida vai servir apenas para matar sua melhor metáfora.
Ou na vida real é admissível agarrar um colega de trabalho pela camisa para que ele não entre na mesma reunião que você? Ou dar um carrinho no meio do sujeito que trabalha numa empresa concorrente quando você o vê com um cliente que é também seu?
Por tudo isso, acho que demissão do Gomes foi injusta. Trata-se de alguém que ousa ser de verdade, e por isso assusta: reflete o que somos e a forma como nos comportamos torcendo em nossas salas ou nas arquibancadas, ou no quarto; personagens que pagaríamos para muitos de nossos colegas, e namorados, e namoradas, e pretendentes não conhecerem, e que ele escancara por aí.
Logo depois da demissão, a TL do João Palomino, diretor da ESPN, continha a seguinte tuitada: “medidas internas já foram adotadas…”. Não curti. Achei desleal e extremamente fazedor de média com a torcida do Grêmio, especialmente se considerarmos a tuitada seguinte: “Até a pé nos iremos na defesa deste compromisso”. Bastaria a demissão se o desejo era contentar os tricolores gaúchos.
Mas o que quero dizer é que provavelmente o Gomes não usaria um eufemismo para contar que demitiu alguém. Ele talvez escrevesse: “Pronto, seus merdinhas, demiti o cara que estava enfurecendo vocês. Agora parem de encher o saco”.
Acho que a gente pode jogar uma luz no episódio da demissão fazendo a seguinte pergunta: Qual das duas formas de encarar a vida mais atrai você?
P.S. – Uma segunda opinião sobre o assunto pode ser lida emhttp://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/2013/09/bissexta-o-triunfo-dos-chatos/
[N.do.E.1: curioso é que hoje, mais cedo, estava lendo um material sobre o MetLife Stadium, a casa dos Giants na NFL, e lá estava escrito bem claro que é proibido palavrão durante as partidas. Será que eles conhecem palavrões em português?]
[N.do.E.2: na verdade a torcida do Palmeiras não foi a única. Os rubro negros também adotaram o urubu como seu símbolo, apesar de originalmente ser uma provocação de classe e de raça contra os Flamengos – a maioria negros e pobres.]
(Foto: Uol)

"Não existe testemunha tão terrível, nem acusador tão implacável quanto a consciência que mora no coração de cada homem." Políbio
Comentário: 

imagem de Carlos Alberto L. Andrade

Quando torcer é um problema novo

Muito boa, oportuna e justa esta análise. Eu me senti dentro do texto por leitor do Flávio Gomes em seu blog onde ele alinhava sua paixão por Vemags e DKWs, pela falecida URSS e todo o desenvolvimento socialista do leste europeu e, eventualmente de automobilismo, nessa ordem, tudo com a paixão desabrida pela Portuguesa a ponto de envolver nela até seus filhos pequenos. Esse episódio da tuitada está sendo superestimado exatamente pela mesma paixão que levou FG a desancar com a torcida gremista: paixão pura!!! Eu me senti dentro do texto ao analisar minhas reações com o América Mineiro em campo. Não há racionalidade na torcida do futebol e já me apanhei chamando juiz de filho da puta e zagueiro adversário de animal um sem número de vezes. Não faria isso em situações normais. Muito bom mesmo ler isso...