Nesta terça feira a coluna da jornalista Milly Lacombe,
correspondente internacional do Ouro de Tolo, nos traz uma interessante
reflexão sobre o ato de torcer a partir da recente demissão do
jornalista Flávio Gomes da Espn. Pessoalmente, costumo dizer que me
transformo em um cafajeste dentro do Maracanã ou em frente à TV.
Quando Torcer é um Problema
Eu não conheço o Flavio Gomes. Nunca o vi pessoalmente e uma vez tive
um entrevero profissional com o irmão dele por aqueles motivos
vagabundos que levam duas pessoas a se espezinhar: ego, vaidade,
melindre.
Por isso me sinto bastante livre para dizer o que penso da demissão dele da ESPN.
Como amante do futebol, sempre achei o Gomes um dos melhores
comentaristas do Brasil. Evidentemente, não concordo com tudo o que ele
diz ou escreve – porque não concordo nem com tudo o que eu digo ou
escrevo, mas vejo nele, além de um excelente jornalista, um homem
apaixonado que não tem medo de se mostrar publicamente com todas as suas
sombras e cicatrizes e falhas e miudezas. É o que me encanta, nele ou
em qualquer outro: o exagero, o politicamente incorreto, o destempero, o
deboche, o humano.
Torcer é perder a cabeça, e sempre me pareceu muito claro que o
twitter do Gomes é usado como um espaço no qual ele se permite perder a
cabeça, pirar, sair de giro, deixar de ser o jornalista e virar apenas o
torcedor. Mas aí é que a gente começa a se complicar porque veio
configurado por essa necessidade ancestral de catalogar e rotular, e sem
isso não somos capazes de entender onde compartimentar a informação
recebida.
Algum de nós, amantes do jogo, torce de forma diferente do que lemos
ali? Nem meu pai, um homem que só usava terno e gravata e era incapaz de
gritar com outra pessoa, torcia diferente daquilo. Cresci ouvindo meu
pai xingar outras torcidas que não fossem a do Fluminense, ofender a mãe
de todos os juizes que apitavam jogos que o Fluminense perdia, e sair
esmurrando portas depois de uma derrota.
Ah sim, mas fazemos entre amigos, numa mesa de bar, no sofá de casa
etc etc etc. Pois é. O Gomes faz publicamente. Ofende. Xinga.
Discrimina. Exclui.
E aqui eu preciso fazer a pergunta dura: existe futebol para além dessas quatro linhas?
É uma pergunta de difícil resposta, eu sei. Porque o mundo está
violento, intolerante, tosco, preconceituoso e a gente fica tentado a
sair moralizando tudo e todos pelo bem das gerações futuras. Mas esse
tipo de tentação, se extrapolada, nos teria privado de Nelson Rodrigues,
por exemplo, um machista misógino adorável e genial.
Ando cansada de ver o futebol ser banalizado e padronizado (na forma
de jogar, nas entrevistas, nos medias trainings, nos comentários, nas
análises) e o Gomes – assim como o João Carlos Albuquerque, o Lucio de
Castro, o Milton Leite e alguns outros, é essa porta para o que ainda é
movido à paixão e à opinião própria.
No twitter dele, essas características são pintadas em cores mais
fortes porque acho que ele entendeu que aquele era um espaço que poderia
ser usado para isso, subestimando, agora parece claro, a caretice e a
moralização do mundo ao nosso redor. Poderia ter se escondido atrás de
um fake, criado um outro personagem, mas preferiu fazer de rosto limpo.
Quem lê o blog sabe que ele é muito mais do que o destempero da TL.
Quem o vê na TV sabe também que ele não é o doido alucinado do twiter. E
quem acompanha a TL sabe que a única torcida que escapa de sua fúria
amalucada é a da Portuguesa – e, ainda assim, nem sempre. E deveria
saber também que o exagero grosseiro vomitado ali é uma caricatura. Nada
disso era novidade para a ESPN, obviamente.
Esse é um mundo de dor que oferece breves intervalos para alegrias, e
o futebol é a melhor de todas as metáforas para a vida porque é feito
de dor e desespero e angustia mais do que de prazer.
É torcendo que a gente entende que tanto sofrimento vai ser sempre
bem vindo porque é ele que nos enobrece. Torcer é aprender a sofrer, a
perder, a sangrar. É vendo um jogo que eu posso gritar, me descabelar,
me perder, me dilacerar sem ser julgada. Ou era assim porque hoje tem
deputado que quer apresentar projeto de lei pelo fim do palavrão no
estádio; e todos sabem que sem palavrão não se faz futebol. Nem em
campo, nem nas arquibancadas, nem em casa. [1]
Acho que o torcedor tem se levado muito a sério. Cresci sendo chamada
de pó de arroz, de fresca, de mimada por causa do Fluminense. Depois,
quando incluí o Cornthians na lista de minhas paixões, passei a ser
muito mais discriminada por ser corintiana do que por ser gay. Nunca me
senti ofendida, a não ser quando, num restaurante, o marido de uma amiga
disse: “O Corinthians é um lixo. Um lixo”. Era um restaurante, ele
disse isso olhando nos meus olhos e não havia nenhum jogo sendo
televisionado. Achei grosseiro e fora e contexto (o contexto, claro,
seria estarmos vendo um jogo ou estarmos em uma arquibancada). Foi a
única vez em que perdi o humor.
Durante muitos e muitos jogos já gritei contra outras torcidas coisas
que deixariam até meu pai assustado. O jogo acaba e eu volto ao normal –
ou ao tão normal quanto possível. Mais triste ou mais feliz, mas mais
razoável e controlada também. Tenho amigos são-paulinos que querem
discutir seriamente, com ótimos e justos argumentos contra a homofobia, o
apelido de bambi que a torcida tem. Não é assim que funciona no
futebol.
E a única torcida que deu a volta no próprio apelido foi a do
Palmeiras quando, genialmente, se apropriou dele e o levou para o seu
lado da arquibancada, chamando a si mesma de Porco. Porque tem isso: o
humor e a sagacidade nunca vão perder o jogo para o abobado agressor – e
todos nós somos abobados agressores aqui e ali. [2]
Nós, os torcedores, precisamos entender que quando o rival diz que
corintiano é favelado, desdentado, analfabeto ou que o são-paulino é
bambi, é viado, é fresco ele não está com isso manifestando um
preconceito; do mesmo jeito que quando xingamos o juiz de filho da puta
ou de corno não acreditamos que a mãe dele ganhe dinheiro trepando ou
que a mulher dele esteja aprontando.
O futebol é um portal para o incorreto, para o que temos de mais
selvagem e pequeno, para o demasiadamente humano em cada um de nós. Se
eu grito “juiz viado do cacete” durante o jogo e alguém escuta eu devo
ser catalogada como homofóbica? Ou se grito: “seu negão filha da puta”
sou racista? Mandar um “seu argentino escroto” faz de mim uma xenófoba?
Ou se uivo “chuta como homem, sua besta desgraçada” sou machista? Se eu
disser isso na padaria enquanto tomo uma média e leio o jornal numa
manhã de terça-feira, certamente mereço ser interditada. Mas durante um
jogo, cega pela paixão, será?
Durante 90 minutos uma partida de futebol comporta o incorreto, a
pior versão de nós mesmos; que talvez seja a mais humana delas se
considerarmos que somos falhos, e fracos e pequenos e que temos um
trilhão de anos e de universos para evoluir.
O que vale para o jogo, não vale para a vida. O fair-play, por
exemplo. Quem inventou essa babaquice? O play não é fair nunca porque o
futebol é como a vida e a vida não é fair. E fair-play só é fair
fair-play se for espontâneo, e não uma obrigação. Igualar na marra o
futebol à vida vai servir apenas para matar sua melhor metáfora.
Ou na vida real é admissível agarrar um colega de trabalho pela
camisa para que ele não entre na mesma reunião que você? Ou dar um
carrinho no meio do sujeito que trabalha numa empresa concorrente quando
você o vê com um cliente que é também seu?
Por tudo isso, acho que demissão do Gomes foi injusta. Trata-se de
alguém que ousa ser de verdade, e por isso assusta: reflete o que somos e
a forma como nos comportamos torcendo em nossas salas ou nas
arquibancadas, ou no quarto; personagens que pagaríamos para muitos de
nossos colegas, e namorados, e namoradas, e pretendentes não conhecerem,
e que ele escancara por aí.
Logo depois da demissão, a TL do João Palomino, diretor da ESPN,
continha a seguinte tuitada: “medidas internas já foram adotadas…”. Não
curti. Achei desleal e extremamente fazedor de média com a torcida do
Grêmio, especialmente se considerarmos a tuitada seguinte: “Até a pé nos
iremos na defesa deste compromisso”. Bastaria a demissão se o desejo
era contentar os tricolores gaúchos.
Mas o que quero dizer é que provavelmente o Gomes não usaria um
eufemismo para contar que demitiu alguém. Ele talvez escrevesse:
“Pronto, seus merdinhas, demiti o cara que estava enfurecendo vocês.
Agora parem de encher o saco”.
Acho que a gente pode jogar uma luz no episódio da demissão fazendo a
seguinte pergunta: Qual das duas formas de encarar a vida mais atrai
você?
[N.do.E.1: curioso é que hoje, mais cedo, estava lendo um
material sobre o MetLife Stadium, a casa dos Giants na NFL, e lá estava
escrito bem claro que é proibido palavrão durante as partidas. Será que
eles conhecem palavrões em português?]
[N.do.E.2: na verdade a torcida do Palmeiras não foi a única. Os
rubro negros também adotaram o urubu como seu símbolo, apesar de
originalmente ser uma provocação de classe e de raça contra os Flamengos
– a maioria negros e pobres.]
(Foto: Uol)
"Não existe testemunha tão terrível, nem acusador tão implacável quanto a consciência que mora no coração de cada homem."
Políbio
Comentário:
Muito boa, oportuna e justa esta análise. Eu me senti dentro do
texto por leitor do Flávio Gomes em seu blog onde ele alinhava sua
paixão por Vemags e DKWs, pela falecida URSS e todo o desenvolvimento
socialista do leste europeu e, eventualmente de automobilismo, nessa
ordem, tudo com a paixão desabrida pela Portuguesa a ponto de envolver
nela até seus filhos pequenos. Esse episódio da tuitada está sendo
superestimado exatamente pela mesma paixão que levou FG a desancar com a
torcida gremista: paixão pura!!! Eu me senti dentro do texto ao
analisar minhas reações com o América Mineiro em campo. Não há
racionalidade na torcida do futebol e já me apanhei chamando juiz de
filho da puta e zagueiro adversário de animal um sem número de vezes.
Não faria isso em situações normais. Muito bom mesmo ler isso...