O Brasil e o perigoso jogo da história
Mauro Santayana
(Versão estendida, sem redução para versão impressa)
Embora
muita gente não o veja assim, o afastamento definitivo de Dilma Roussef
da Presidência da República, em votação do Senado, por 61 a 20 votos,
no final de agosto, é apenas mais uma etapa de um processo e de um
embate muito mais sofisticado e complexo, em que está em jogo o controle
do país nos próximos anos.
Desde que chegou ao poder, em 2003, o PT conseguiu a extraordinária
proeza de fazer tudo errado, fazendo, ao mesmo tempo, paradoxalmente,
quase tudo certo.
Livrou o país da dependência externa, pagando a dívida com o FMI, e
acumulando 370 bilhões de dólares em reservas internacionais, que
transformaram nosso país, de uma nação que passava o penico quando por
aqui chegavam missões do Fundo Monetário Internacional, no que é, hoje -
procurem por mayor treasuries holders no Google - o quarto maior
credor individual externo dos Estados Unidos.
E o fez, ao contrário do que dizem críticos mendazes, sem aumentar a dívida pública.
A Bruta, em 2002, era de 80% e hoje não chega a 70%.
A Líquida era, em 2002, de aproximadamente 60% e hoje está por volta de 35%.
Mas isso não veio ao caso.
Ajudou a criar milhões de empregos, fez milhões de casas populares,
criou o Pronatec, o Ciências Sem Fronteiras e o FIES, fez dezenas de
universidades e escolas técnicas federais e promoveu extraordinários
avanços sociais.
Mas isso não veio ao caso.
Voltou a produzir e a construir, depois de décadas de estagnação e
inatividade, navios, ferrovias - vide aí a Norte-Sul, que já chegou a
Anápolis - gigantescas usinas hidrelétricas (Belo Monte é a terceira
maior do mundo) plataformas e refinarias de petróleo, mísseis ar-ar e de
saturação, tanques, belonaves, submarinos, rifles de assalto,
multiplicou o valor do salário mínimo e da renda per capita em dólares.
Mas isso não veio ao caso.
Porque o Partido dos Trabalhadores foi extraordinariamente
incompetente em explicar, para a opinião pública, o que fez ou o que
estava fazendo.
Se tinha um projeto para o país, e que medidas faziam,
coordenadamente, na economia, nas relações exteriores, na infraestrutura
e na defesa, parte desse projeto.
Em vez de "bandeiras" nacionais, como a do fortalecimento do país no
embate geopolítico com outras nações, que poderiam ter "amarrado" e
explicado a criação do BRICS, os investimentos da Petrobras no pré-sal, a
política para a África e a América Latina do BNDES, o rearmamento das
Forças Armadas, os investimentos em educação e cultura, em um mesmo
discurso, o PT limitou-se a investir em conceitos superficiais e
taticamente frágeis, como, indiretamente, o do mero crescimento
econômico, fachada para as obras do PAC.
Na comunicação, o PT confiou mais na empatia do que na informação.
Mais na intuição, do que no planejamento.
Chamou, para estabelecer sua linha de comunicação, "marqueteiros" sem
nenhuma afinidade com as causas defendidas pelo partido, e sem maior
motivação do que a de acumular fortunas, que se dedicaram a produzir
mensagens açucaradas, estabelecidas segundo uma estratégia eventual,
superficial, voltadas não para um esforço permanente de fortalecimento
institucional da legenda e de seu suposto projeto de nação, mas apenas
para alcançar resultados eleitorais sazonais.
O Partido dos Trabalhadores teve mais de uma década para explicar,
didaticamente, à população, as vantagens da Democracia, seus defeitos e
qualidades, e sua relação de custo-benefício para os povos e as nações.
Não o fez.
Teve o mesmo tempo para estabelecer, institucionalmente, uma linha de
comunicação, que explicasse, primeiro, a que tinha vindo, e os avanços e
conquistas que estava obtendo para o país.
Como, por exemplo, a multiplicação do PIB em mais de quatro vezes, em
dólar, desde o governo FHC - trágicos oito anos em que, segundo o Banco
Mundial, o PIB e a renda per capita em dólares andaram para trás - que
foram simplesmente ignorados.
Poderia ter divulgado, também, os 79 bilhões de dólares de
Investimento Estrangeiro Direto dos últimos 12 meses, ou o aumento do
superavit no comércio exterior, ou o fato de o real ter sido a moeda que
mais se valorizou este ano no mundo, ou o crescimento da valorização do
Bovespa desde o início de 2016, como exemplos de que o diabo não estava
tão feio quanto parecia.
Mas também não o fez.
Sequer em seu discurso de defesa ao Senado - que deveria ter sido
usado também para fazer uma análise do legado do PT para o país - Dilma
Roussef tocou nestes números, para negar a situação de descalabro
nacional imputada de forma permanente ao Partido dos Trabalhadores pela
oposição, os internautas de direita e parte da mídia mais manipuladora e
venal.
O PT dividiu-se, também, quando não deveria, e não estabeleceu uma
estratégia clara, de longo prazo, que pudesse manter em andamento o
projeto - de certa forma intuitivo - que pretendia implementar para o
país.
O partido e suas lideranças foram reiteradamente advertidos de que
ocorreria no Brasil o que aconteceu no Paraguai com Lugo - a presença
aqui da mesma embaixadora norte-americana do golpe paraguaio era
claramente indicativa disso.
De nada adiantou.
De que era preciso estabelecer uma defesa competente do governo e de
seu projeto de país na internet - cujos principais portais foram desde
2013 praticamente abandonados à direita e à extrema-direita enquanto a
esquerda, sem energia para se mobilizar, se recolhia ao monólogo, à
vitimização e à lamentação vazia em grupos fechados e páginas do
Facebook.
De nada adiantou.
Não se deu combate às excrescências que sobraram do governo Fernando
Henrique, justamente no campo da corrupção, com a investigação de uma
infinidade de escândalos anteriores, que poderia ter levado à cadeia
bandidos antigos como os envolvidos agora, por indicação também de
outros partidos, nos problemas da Petrobras.
E erros táticos imperdoáveis - não é possível que personagens como
Dilma e Lindbergh continuem defendendo a Operação Lava-Jato, de público,
em pleno julgamento do impeachment, quando essa operação parcial e
seletiva foi justamente o principal fator na derrubada da Presidente da
República.
Sob o mote de um republicanismo "inclusivo", mas cego, criou-se um
vasto ofidário, mostrando, mais uma vez, que o inferno - o próprio, não o
dos outros - pode estar cheio de boas intenções.
Desse processo, nasceram uma nova classe média e uma plutocracia
egoístas, conservadoras e "meritocráticas", paridas no bojo da expansão
econômica e do "aperfeiçoamento" administrativo, rapidamente entregues,
devido à incompetência estratégica à qual nos referimos antes, de mão
beijada, para adoção institucional pela direita.
Ampliaram-se a autonomia, o poder e as contratações do Ministério
Público e da Polícia Federal, medidas elogiáveis, que poderiam em
princípio funcionar muito bem em um país verdadeiramente democrático,
mas que, no Brasil da desigualdade e da manipulação midiática, levaram à
criação de uma nova casta - majoritariamente conservadora - de
funcionários públicos educados em universidades privadas - também
ideologicamente alinhadas com a direita - com financiamento do FIES e em
cursinhos para concurseiros, que não tem nenhuma visão real do que é o
país, a República ou a História, e acham - ao lado de jovens juízes -
que devem mandar na Nação no lugar dos "políticos" e do povo que os
elege.
Como consequência disso, há, hoje, uma batalha jurídica que está
sendo travada, principalmente, no âmbito do Congresso Nacional, voltada
para a aprovação de leis fascistas - disfarçadas, como sempre ocorre,
historicamente, sob a bandeira da anti-corrupção, que, com a desculpa de
combater a impunidade - em um país em que dezenas de milhares de
presos, em alguns estados, a maioria deles, se encontra detido em
condições animalescas sem julgamento ou acesso a advogado - pretende
alterar a legislação e o código penal para restringir o direito à ampla
defesa consubstanciado na Constituição, no sentido de se permitir a
admissibilidade de provas ilícitas, de se restringir a possibilidade de
se recorrer em liberdade, e de conspurcar os sagrados e civilizados
princípios de que o ônus da prova cabe a quem está acusando e de que
todo ser humano será considerado inocente até que seja efetiva e
inequivocamente provada a sua culpa.
Batalha voltada, também, para expandir o poder corporativo dessa mesma plutocracia e seus muitos privilégios.
Enquanto isso, aguerrida, organizada, fartamente financiada por
fontes brasileiras e do exterior, a direita - "apolítica",
"apartidiária", fascista, violenta, hipócrita - deu, desde o início do
processo de derrubada do PT do governo, um "show" de mobilização.
Colocou milhões de pessoas nas ruas.
E estabeleceu seu domínio sobre os espaços de comentários dos grandes
portais e redes sociais - a imensa maioria das notícias já eram, desde
2013 pelo menos, contra o governo do PT, em um verdadeiro massacre
midiático promovido pelos grandes órgãos de comunicação privados -
estabelecendo uma espécie de discurso único que, embora baseado em
premissas e paradigmas absolumente falsos, se impôs como sagrada verdade
para boa parte da população.
Entre as principais lições dos últimos anos, vai ficar a de que a
História é um perigoso jogo que não permite a presença de amadores.
Enganam-se aqueles que acham que o confronto expõe apenas a direita e
a esquerda, ou o PT e o PSDB - que agora se assenhoreou do PMDB e dos
partidos do baixo clero.
Muito mais grave é a guerra que se desenha - e que já começou, não se
iludam - entre aqueles que atacam a política, os "políticos", a
democracia e o presidencialismo de coalizão - e aqueles que, por
conveniência ou idealismo, serão chamados a mobilizar-se para
defendê-los daqui até 2018 e além.
O futuro da República e da Nação será definido por esse embate.
E é o conjunto de erros e circunstâncias que vivemos até agora, e o
que faremos a partir de agora, que poderá levar, ou não, para o Palácio
do Planalto e o Parlamento, um governo fascista e autoritário em 2019.
Os opositores do PT tiveram com o processo de afastamento de Dilma,
iniciado ainda em 2013, à época da Copa do Mundo, uma vitória de Pirro.
A judicialização da política, a ascensão da Antipolítica e de uma
plutocracia que acredita, piamente, que não precisa de votos, nem de
maior legitimação do que sua condição de concursada para "consertar" o
país e punir vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores,
Presidentes da República, em defesa de "homens de bem" que desfilam com
as cores da bandeira e com uniformes negros de inspiração nazista,
ajudará a sepultar, no lugar de aperfeiçoar, o regime presidencialista
anteriormente vigente, e introduzirá um novo elemento, ilegítimo e
espúrio, no universo político brasileiro, transformando-se em permanente
ameaça para o funcionamento e a essência da Democracia.
Infelizmente, para o país e para a República, a permanência de Dilma
no poder tornou-se, devido à irresponsabilidade da mídia e da oposição -
vide as pautas bomba do ano passado - ao sucesso da estratégia de
fabricação do consentimento levada a cabo pela direita e à incompetência
política do Partido dos Trabalhadores - de tal forma insustentável,
que, se ela voltasse, caminharíamos para uma situação de confronto em
que o fascismo - como ocorreu em 1964, no Brasil, e, mais tarde, no
Chile e na Argentina - ficaria - como já está ficando, de fato - com
todas as armas, e a esquerda, com todas as vítimas.
Nações e pessoas precisam aprender que, às vezes, é preciso saber dar um passo para trás para depois tentar avançar de novo.
É preciso resistir, mas com um projeto claro para o país.
A corajosa defesa do governo Dilma por parte de grandes lideranças
da agricultura e da indústria brasileira, como os senadores Kátia Abreu,
ex-Presidente da Confederação Nacional da Agricultura, e Armando
Monteiro, ex-Presidente da Confederação Nacional da Indústria, mostram
que não é impossível sonhar com uma aliança que una empresários e
trabalhadores nacionalistas em torno de um projeto vigoroso e coordenado
de desenvolvimento, que possa promover o fortalecimento do país, do
ponto de vista econômico, militar e geopolítico - é preciso preservar e
concluir os programas concebidos e iniciados nos últimos anos, como o
dos caças Gripen NG BR, o do submarino atômico nacional, o do cargueiro
multipropósito KC-390, o dos tanques leves Guarani, o projeto de
enriquecimento de urânio da Marinha - e evitar, ao mesmo tempo, a
abjeta entrega de nossas riquezas, como os principais poços do pré-sal,
já descobertos, desenvolvidos e produzindo, aos estrangeiros (até
mesmo a estatais estrangeiras, como estão defendendo, em absurda
contradição, parte de nossos privatistas de plantão).
A costura de uma aliança que evite a subordinação e o caos e a
transformação do país em uma nação fascista, na prática, em pouco mais
de dois anos, deveria ser, daqui pra frente, a primeira missão de todo
cidadão brasileiro - ou ao menos daqueles que tenham um mínimo de
consciência e de informação - neste país assolado pelo ódio e pela
mentira, a hipocrisia e a ignorância.
A divisão da Nação, a crescente radicalização e o isolamento
antidemocrático das forças de esquerda - que devem combater esse
isolamento também internamente e rapidamente se organizar sob outras
legendas e outras condições - a fratura da sociedade nacional; a
desqualificação da política e da democracia; só interessam àqueles que
pretendem consolidar seu domínio sobre o nosso país, evitando que o
Brasil fortaleça sua soberania e a sua sociedade, em todos os aspectos, e
que venha a ocupar o lugar que lhe cabe no mundo, como quinta maior
nação do planeta em população e território.
É preciso costurar uma ampla aliança nacional, que parta,
primeiramente, do centro nacionalista - se não existir, é preciso
criar-se um - suprapartidária, politicamente includente, equilibrada e
conciliatória, que una militares nacionalistas da reserva - e eles
existem, vide o Almirante Othon, por exemplo - empresários como Armando
Monteiro e Kátia Abreu, técnicos e engenheiros desenvolvimentistas,
grandes empresas de capital majoritariamente nacional e os
trabalhadores, começando pelos de grandes estatais como a Petrobras, em
torno de um projeto que possa evitar a descaracterização e a destruição
da Democracia, o estupro das liberdades democráticas e dos direitos
individuais, o pandemônio político einstitucional e a "fascistização"
do país, com a entrega de nossas riquezas e de nosso futuro aos ditames
internacionais.
Vamos fazê-lo?