Impeachment político é golpe
Aldo Fornazieri
Desmoralizadas as teses de que a presidente Dilma cometeu crime de responsabilidade, condição sine qua non
para legitimar a consumação de qualquer impeachment, os arautos do
golpe agora se refugiam em outras duas teses estapafúrdias e grotescas: a
de que o impeachment é eminentemente político dependendo da vontade
política dos congressistas e de que ele deve ter respaldo na mobilização
da sociedade. Em artigo anterior mostrei que o conceito de golpe não se
aplica apenas à intervenção militar (O golpe, a salvação de Cunha e a história como um equívoco, por Aldo Fornazieri).
Ali indica-se que a natureza do golpe consiste no fato de que ele é
praticado por autoridades e funcionários públicos e que sua essência
consiste na violação da Constituição.
O depoimento do professor Ricardo Lodi no Senado Federal, na condição
de informante, nesses últimos dias do julgamento da presidente Dilma,
reduziu a escombros a tese de que Dilma cometeu crime de
responsabilidade. Lodi mostrou cabalmente que: 1) as chamadas “pedaladas
fiscais”, que não são um conceito jurídico estabelecido em nenhum
documento, não constituem crime de responsabilidade, pois não há nenhum
prazo legalmente estabelecido para que o governo salde os breves débitos
junto aos bancos públicos. O governo Dilma saldou esses débitos, no
máximo, em quatro meses, o que está dentro de um limite de
razoabilidade; 2) em 2015, o governo Dilma cumpriu a meta fiscal,
redefinida pelo Congresso no final do ano. Mesmo que o governo não
tivesse cumprido a meta fiscal não seria crime de responsabilidade, pois
as contingências da economia podem impedir que um governo cumpra a meta
fiscal. O que constitui crime de responsabilidade é o não cumprimento
da Lei Orçamentária, coisa de que Dilma não é acusada; 3) os decretos
suplementares não constituem crime de responsabilidade, pois há uma
compatibilidade entre decretos complementares e contingenciamento do
orçamento. Assim, os decretos de suplementação não elevam execução de
despesa pública; 4) ademais, quanto a autoria dos decretos, eles são
definidos por lei e não são de responsabilidade direta da presidente. Os
próprios técnicos do Senado haviam concluído que Dilma não é
responsável pelos decretos.
Então o que se tem é o seguinte: não há crime de responsabilidade.
Porém, se quer julgar Dilma por prazos que legalmente não existem e se
quer imputar a ela reponsabilidade que a lei atribui a autoria de
terceiros. Impeachment sem crime de reponsabilidade, como tanto o
disseram, é golpe. Impeachment que se reduz à vontade política dos
congressistas é golpe. Impeachment que se fundamenta na vontade
majoritária da população e em manifestações de rua, sem crime de
responsabilidade política, é golpe.
O fundamento do impeachment deve ser jurídico
Os mistificadores de plantão sustentam que o impeachment é um
processo político. Nada mais falso. Ele é um processo jurídico que
produz consequências políticas, pois cessa o mandato de um presidente
eleito pelo povo. Para entender a natureza e essência jurídica do
processo impeachment é preciso ir à sua fonte: a Constituição dos
Estados Unidos. O mecanismo se estrutura no âmbito da teoria dos
equilíbrios, freios e contrapesos do republicanismo moderno. O
impeachment foi criado como um contrapeso dado ao Legislativo em face do
peso dado ao Executivo pelo poder de veto do Presidente da República. O
inciso 6 do Artigo I da Constituição americana afirma o seguinte:
“Caberá exclusivamente ao Senado julgar todos os processos de crime de
responsabilidade (impeachment). Quando este estiver reunido para tal
fim, os Senadores prestarão juramento ou compromisso. O julgamento do
Presidente dos Estados Unidos será presidido pelo Presidente da Suprema
Corte...”.
No Artigo II, seção IV se complementa afirmando que “o Presidente, o
Vice-Presidente e todos os funcionários dos Estados Unidos serão
destituídos de seus cargos quando forem acusados e condenados, em
processo de impeachment, por traição, suborno ou outros crimes e delitos
graves”. Nos Estados Unidos, o processo de impeachment é uma imputação
tão grave que até hoje, desde 1787, somente três presidentes tiveram
processos abertos e nenhum perdeu o mandato em julgamento final. Richard
Nixon perdeu a presidência por renúncia e não por julgamento. No
Brasil, em apenas 28 anos da nova Constituição tempos dois
impeachaments. Está claro aqui que o impeachment não pode ser banalizado
como instrumento de luta política, como é o atual caso brasileiro.
A Constituição brasileira é um reflexo da Constituição americana
neste ponto. Então note-se que o Senado só poderá julgar o Presidente em
face de crime de responsabilidade e não pelo fato do governo ser mal
avaliado, pelo “conjunto da obra” ou porque o governo cometeu erros
políticos, administrativos ou contábeis. O inciso 7 define que a
consequência do julgamento do Senado é política: reduz-se à perda do
mandato e/ou a inabilitação para cargo público.
O constitucionalismo norte-americano entende que os Pais Fundadores
definiram a necessidade da presidência do Senado pelo presidente da
Suprema Corte no processo de julgamento justamente para evitar que o
julgamento seja político. O Senado simplesmente julga em face de uma
acusação formulada pela Câmara dos Deputados. No processo de julgamento,
o Senado se transforma em tribunal e o único juiz ali presente é o
presidente da Suprema Corte. Ao contrário do que se diz aqui no Brasil,
os senadores não são juízes, mas jurados.
Os golpistas violam a Constituição
O golpe contra a presidente Dilma emergiu de várias ramificações e
conspirações: da vice-presidência da República, da presidência da
Câmara, de setores do judiciário e do Ministério Público, de integrantes
do STF, da Política Federal, de senadores e de dentro do Tribunal de
Constas da União. Na verdade, foi no TCU onde o golpe foi cevado.
Nos depoimentos no Senado e na argumentação da defesa da presidente
Dilma ficou cabalmente demostrado que, tanto nas chamadas pedaladas
fiscais quanto nos decretos de suplementação, nada foi feito que ficasse
fora da jurisprudência estabelecida, inclusive pelo próprio
entendimento do TCU, seja em relação a governos anteriores, seja em
relação ao governo Dilma até 2014. Foi demostrado também que, dada a
falta de sustentação jurídica para o impeachment, o TCU foi mudando sua
interpretação em relação aos atrasos dos pagamentos aos bancos públicos
e aos decretos de suplementação. Essa mudança de intepretação ocorreu
em outubro, quando os débitos com os bancos já tinham sido quitados e os
decretos de suplementação assinados. Os defensores do impeachment
sustentam a tese do crime de responsabilidade justamente com base nessa
nova intepretação do TCU.
É justamente aqui que há uma clara violação da Constituição:
pretende-se fazer que a interpretação do TCU retroaja no tempo como uma
lei ex post facto. A Constituição americana proibiu
explicitamente este tipo de lei por entender que ela fere direitos e
que, portanto, a sua proibição é uma garantia do Estado de Direito. O
Artigo 5º, inciso XXXVI da nossa Constituição Federal diz que “A lei não
prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e coisa
julgada”, o que equivale à proibição de leis ou interpretações de leis
retroativas.
Se a essência do golpe se caracteriza pela violação da Constituição
eis aqui os dois atos que a violam: julgar a presidente sem crime de
responsabilidade e tentar estabelecer a retroatividade de uma
interpretação do TCU, violando o artigo 5º da Constituição. Como o golpe
é um crime contra a Constituição brasileira, há que se lutar para que
os golpistas sejam afastados do poder e julgados. Se o STF não tivesse
se acovardado, já teria extinto o processo de impeachment por ser
improcedente. O STF é Corte Constitucional e é seu dever impedir que a
Constituição seja violada pelos poderes da República e por seus
funcionários. O ministro Ricardo Lewandowski, como presidente do
tribunal que julga (o Senado), deveria fazê-lo nestes últimos momentos
angustiantes de um processo que fere gravemente a democracia brasileira.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.