O insulto de Gilmar a seus colegas de STF
Por Miguel do Rosário no “O Cafezinho”
A
palhaçada recomeça.
Ministros
do Supremo Tribunal Federal (STF) deveriam ter comportamento discreto.
Só
aqui no Brasil, eles se tornam agentes políticos com destaque, emitindo
opiniões escalafobéticas sobre os destinos e problemas da nossa democracia.
Gilmar
Mendes volta a ribalta com uma entrevista bombástica à Folha.
Nela,
ele desenvolve conceitos, no mínimo, criativos.
Diz
que o STF corre o risco de se tornar uma “corte bolivariana”.
Falando
isso, Gilmar comete a proeza de ofender dois países: a Venezuela e o Brasil,
além de ofender profundamente seus colegas de STF.
O
conceito de “bolivarianismo”, como entende nossa mídia e seus lacaios, é um
surto de mentes colonizadas.
Durante séculos, as cortes supremas da
América Latina foram subservientes aos interesses das elites. Chancelaram
ditaduras, ou mesmo criaram outras. Derrubaram governantes eleitos. E sempre,
sempre, sempre estiveram ao lado dos opressores e da injustiça.
Quando
as circunstâncias históricas fazem com as cortes supremas se tornem um pouco
mais democráticas, mais preocupadas com problemas de justiça social do que com
os arroubos golpistas da classe dominante, aí elas são chamadas de
“bolivarianas”.
A
mesma coisa vale para o Brasil.
O
nosso STF chancelou e apoiou a ditadura. Seu contraponto ao regime militar foi
tão discreto e leve que praticamente ninguém o percebeu.
Mais
importante, o STF sempre foi o escoadouro de um Judiciário profundamente
conservador e patrimonialista.
Patrimonialismo
que alguns agora querem virar de ponta a cabeça e, numa pirueta conceitual,
atribuir ao PT.
Não.
O PT chegou ao poder apenas pelo voto popular e pela conquista democrática dos
sindicatos.
O
patrimonialismo, conforme descrito por Raymondo Faoro, se caracteriza pela
ocupação hereditária do Estado, via postos vitalícios, em especial o
Judiciário.
Faoro
explica que, na medida em que a elite perde poder econômico, em virtude das
crises, ela investe na formação de quadros, em sua própria família, capazes de
preencher os espaços políticos da administração pública.
O
Judiciário sempre foi visto como um espaço político da elite.
O
temor de Gilmar Mendes, e da mídia, não é que o STF se torne uma corte
“bolivariana”.
Seu
temor é que se torne uma corte democrática.
A
prerrogativa das forças políticas, eleitas pelo povo, de nomear integrantes do
STF, nasce do entendimento de que deve ou mesmo precisa haver harmonia entre os
poderes.
A
concepção de Gilmar de que o STF deve ter função “contramajoritária”,
entendendo-se isso como um órgão quase de oposição ao Executivo, é um insulto a
doutrina democrática.
O
STF deve ter função contramajoritária em se tratando de processos penais,
quando há sentimento pró-linchamento, e a corte deve se apegar estritamente aos
autos e aos direitos humanos.
Exatamente o que não fez na Ação Penal
470, quando a gente mencionava, inclusive, esse papel contra-majoritário do
STF, e figuras como Gilmar Mendes, com apoio da mídia, alardeavam que a corte
não podia “decepcionar” a opinião pública.
De
resto, o STF deve sim ser aliado do Executivo e do Legislativo. Ele está ali
para ajudar, para evitar erros, para orientar. Jamais para fazer oposição, pois
sua corte não foi eleita, e ao juiz é proibido, terminantemente, entrar no jogo
político-partidário.
Vamos
repetir: o Código de Ética da Magistratura, a Constituição Federal, e o código
do STF, deixam bem claro que juízes não podem exercer atividade
político-partidária, ou seja, não podem se arvorar como agentes
“contramajoritários” de um governo eleito, beneficiando a oposição.
A
posição de Gilmar é minoritária no STF.
No
entanto, o apoio que tem na mídia a faz parecer dominante.
Sempre
achei incrível a desenvoltura com que os juízes aliados da mídia assumem
posições ideológicas. Mesmo sendo minoria, mesmo estando isolados, aparecem
como campeões da razão, como vencedores do debate. Parecem não ter dúvidas
sobre nada. Fazem declarações estapafúrdias sem que haja nenhum contraponto.
Enquanto
isso, os ministros que, estes sim, exercem o papel contramajoritário em relação
à mídia, e que procuram se portar de maneira republicana e reservada, como cabe
a juízes, são vistos como tristes derrotados ideológicos, quando não
criminalizados pelo clima de polarização política que se forma no país.
Prezados
ministros, não caiam nessa!
A
mídia brasileira quer transformar os derrotados em vencedores e os vencedores
em derrotados.
Gilmar
Mendes representa os derrotados. Ele é símbolo de um STF emasculado, a serviço
das classes dominantes, da mídia e de um governo oligárquico e corrupto.
Quem
foi o governo que aprovou a reeleição para si mesmo, sem a delicadeza de fazer
uma consulta popular, como fizeram os “bolivarianos” da América Latina?
Quem
foi o STF que aprovou esse absurdo, obviamente inconstitucional, de mudar regras
eleitorais para si mesmo, e com o jogo em andamento?
Quem
foi “bolivariano”?
Quanto
a Pizzolato, Gilmar Mendes sabe muito bem o que aconteceu. Foi mais um
condenado sem provas, exatamente porque o STF não soube se portar de maneira
“contramajoritária” em relação à atmosfera de linchamento político produzida
pela mídia.
Pior,
foi condenado contra as provas de sua inocência. Cúmulo dos cúmulos, a ele foi
negado o acesso a documentos que poderiam inocentá-lo.
A posição de Gilmar Mendes, ao tentar
desqualificar seus próprios colegas, chamando-o de “bolivarianos”, apenas
mostra a sua desonestidade intelectual.
Mendes
é o mais autoritário dos ministros do STF. Não aceita críticas nas redes
sociais. Faz o papel de ministro tagarela e midiático, tornando-se uma figura
ultra pública, e ao mesmo tempo não tolera o contraponto, intimidando seus
críticos com processos, o que revela uma personalidade profundamente
antidemocrática.
Quem
define como a corte deve ser? A mídia? Gilmar? Quem define o que é bolivariano?
Nos
EUA, os presidentes também indicam os ministros da corte suprema, e os
ideólogos da democracia, como Robert Dahl, explicam que a tendência a
harmonizar a corte à vontade da maioria (representada pelo Executivo, que é
eleito), é uma necessidade vital.
Franklin
Roosevelt, por exemplo, não conseguiu fazer nada nos primeiros anos de seu
governo, porque todas as suas iniciativas eram derrubadas na corte suprema. Com
o passar dos anos (ele foi eleito quatro vezes, antes de instituírem o limite
de apenas uma reeleição), ele foi indicando os ministros do tribunal e
conseguindo, com isso, fazer passar leis importantes para a manutenção do nível
de emprego e da atividade econômica dos EUA.
A
maior crítica de Dahl a corte suprema americana é o fato dela representar, às
vezes, um obstáculo à implementação de iniciativas do governo eleito,
tornando-se, com isso, um elemento não-democrático.
No
caso do Brasil, o problema maior é que, além de representar, frequentemente, um
elemento antidemocrático, o STF é vulnerável às pressões da mídia e das classes
que dominam essa mídia, porque os ministros são oriundos dessas mesmas classes
e estão cercados (e ameaçados), portanto, por sua mídia.
Problemas
de um país ainda profundamente desigual.
O
STF deve ser independente da mídia brasileira, cujo poder nasceu da ditadura, e
respeitar profundamente o Executivo, cujo poder emana do povo, via sufrágio
universal.
Só quando der uma banana para nossa mídia
golpista (e a chamo golpista porque apoiou o golpe de 64, e até hoje apoia tudo
que é golpe de Estado em nossa vizinhança), e entender que esta representa tudo
que existe de autoritário, injusto e truculento em nossa cultura, a nossa corte máxima será genuinamente
democrática.