Bonner e Poeta expõem o desespero tautista da TV Globo
por: Wilson Ferreira
A verborragia estudada e simulada de William Bonner e Patrícia
Poeta (perguntas quilométricas e fisionomias treinadas em longos anos de
experiência olhando para “teleprompters” nos estúdios de TV) na suposta
entrevista com a candidata Dilma Roussef não quis dizer apenas que a TV
Globo “não gosta dela”.
A dupla de apresentadores do Jornal Nacional
involuntariamente expôs a dramática situação atual da emissora: o
desespero “tautista” (tautologia + autismo) – ter que ao mesmo tempo
assumir o papel de oposição política servindo de câmara de eco da pauta
da grande mídia e institutos de pesquisa e ter que demonstrar
histericamente que ela é imparcial para tentar recuperar uma audiência
em queda pela perda de credibilidade e relevância.
A resposta da
emissora para seu dilema existencial não poderia ser mais autista quando
utiliza a técnica de dissociação psíquica na entrevista, velha tática
do Manual Kubark de Interrogatório e Contra-inteligência” da CIA.
Em 1985, no último bloco de debate dos candidatos à Prefeitura de São
Paulo, o jornalista Boris Casoy disparou uma pergunta a Fernando
Henrique Cardoso: “Senador, o sr. acredita em Deus? A reposta dessa
pergunta simples e direta fez ele perder uma eleição que parecia ganha.
Um ano depois, durante a Copa do Mundo no México, o dublê de ator e
jornalista Marcelo Tas, na pele do personagem cínico Ernesto Varela,
conseguiu invadir a concentração da seleção brasileira para dar de cara
com o cartola Nabi Chedid, então chefe da delegação. Varela foi direto:
“depois da Copa, qual será a sua próxima jogada?”. Transtornado com a
pergunta maliciosa, Nabi expulsou ele e o câmera Toniko Melo da
concentração.
No passado, perguntas simples e diretas eram
capazes de desconstruir entrevistados
capazes de desconstruir entrevistados
Esses foram tempos onde a televisão ainda possibilitava a abertura de
espaços para a realidade do mundo exterior, a realidade de um país que
se abria politicamente depois duas décadas de regime militar. Uma década
onde uma série de programas televisivos utilizavam uma linguagem
experimental assentada na metalinguagem como possibilidade de
desconstruir todos os chavões, clichês e estereótipos da grande mídia.
Assim como o personagem Ernesto Varela, que através de perguntas diretas
e inesperadas desmontava todos os clichês do jornalismo televisivo e,
ao mesmo tempo, conseguia se sintonizar com a realidade de um país que
mudava.
O que testemunhamos no último dia 18 na espécie de “pinga fogo” da
bancada do Jornal Nacional da TV Globo com a candidata à reeleição Dilma
Roussef foi o sintoma de toda uma reversão que a televisão brasileira
mergulhou em duas décadas depois dos experimentos televisivos radicais
como Fábrica do Som, Perdidos na Noite, Goulart de Andrade e o próprio repórter amalucado Ernesto Varela da produtora Olhar Eletrônico.
Os 40% de tempo de fala que os “entrevistadores” William Bonner e
Patrícia Poeta ocuparam na sabatina à candidata Dilma demonstraram não
só como a metalinguagem e a autorreferência que domina hoje a TV deixou
de ser radicalmente crítica como nas experiências descritas acima, para
se tornar um sintoma de uma espécie de desespero tautista em que a TV
Globo se encontra.
Na verdade, Bonner e Poeta não estavam ali para entrevistar a
candidata, mas para desesperadamente falar de si mesmos, como em todo
programa do gênero talkshow da TV pós-moderna, ou “Neotevê”
como dizia Umberto Eco. a atração já não é tanto as ideias ou a
personalidade do entrevistado mas o estilo ou as idiossincrasias do
entrevistador: suas conversas com os câmeras, as brincadeiras com o boom operator, as piadas e gozações com membros da banda musical de apoio etc.
É como se a Neotevê fizesse um constante making-off. O mundo exterior é um mero pretexto para ela se desnudar na frente do telespectador.
Simulação de imparcialidade com
fisionomias aprendidas em anos
olhando para
os teleprompters dos estúdios
fisionomias aprendidas em anos
olhando para
os teleprompters dos estúdios
Mas no caso de Bonner e Poeta há um ingrediente a mais, o desespero
tautista: eles precisam simular o quanto eles são implacavelmente
críticos e objetivos (supostamente estão ali para dar paulada em todos)
e, ao mesmo tempo e de forma paradoxal, têm que se tornar uma espécie de
câmara de eco da própria agenda criada pela grande mídia e pelos
institutos de pesquisa nessas eleições: corrupção, mensalão, crise da
saúde, crise econômica e inflação.
Suas verborragias estudadas e simuladas (dedos em riste, soquinhos na
mesa, os olhos apertados de Bonner sugerindo argúcia e gravidade e as
expressões de ojeriza ou repugnância de Poeta – sobrancelhas erguidas e
lábios apertados) expressam uma situação desesperadora para a grande
mídia, mas em particular para a TV Globo: ela tem que assumir o papel de
oposição (desde a convocação de Maria Judith Brito, em 2010 presidente
da Associação Nacional dos Jornais) e, ao mesmo tempo, aparentar
imparcialidade e credibilidade numa situação atual de curva descendente
de audiência.
As perguntas quilométricas de Bonner e Poeta, muito mais a repetição
dos mantras estampados nas perguntas dos institutos de pesquisas, é o
sintoma desse tautismo global, tendência generalizada da chamada
Neotevê, mas que se torna dramática na atual condição esquizofrênica em
que se meteu a Globo.
O que é tautismo?
Conceito criado pelo francês Lucien Sfez, o tautismo tem
a ver com o que ele chamava de “comunicação confusional”, traço
dominante contemporâneo onde o processo comunicacional teria se tornado
um diálogo sem personagem. Só leva em conta a si mesmo, isto é, a
comunicação como seu próprio objeto. (veja SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2000).
Sfez: o tautismo é uma
"comunicação confusional"
"comunicação confusional"
Sistemas de comunicação que se tornam expansivos e complexos
tenderiam às características de auto-organização e fechamento: de um
lado a característica da tautologia (repetição lógica onde o resultado é
igual a sua proposição; soma-se a isso o autismo onde o sistema de
comunicação cria um mundo próprio com pouco ou nenhum contato com o
mundo exterior.
As redes das grandes mídias acabaram criando uma verdadeira câmara de
eco onde seus experts, editores, chefes, colunista e executivos criaram
uma agenda cujos temas são confirmados pelos números e estatísticas de
pesquisas cujas perguntas tendenciosas acabam confirmando proposições e
hipóteses. Tautismo, em síntese: discurso autorreferencial, delirante,
neurótico.