O volume morto e o dinheiro vivo
Como não intuir o peso da riqueza de US$ 22,8 bilhões da família Marinho na esférica oposição da Globo a uma reforma fiscal que taxe as grandes fortunas?
por: Saul Leblon
A família mais rica do Brasil - os Marinho e seu oceânico pecúlio de US$ 22,8 bilhões, conforme noticia a revista Forbes - é também a proprietária do maior conglomerado midiático do país.
A supremacia das Organizações Globo é conhecida.
Mas o fato de que essa casamata dispare diuturnamente contra qualquer variável que afronte a lógica argentária, da qual seus donos são os maiores expoentes e beneficiários, presta-se a algumas considerações.
Olhada dessa ótica, a fortuna dos Marinhos figura como uma questão política, talvez uma das mais sensíveis da política brasileira.
Ou será que quando interesses marmorizados em uma riqueza da ordem de R$ 50 bilhões –seis vezes o custo dos estádios da Copa-- se entrelaçam ao poder de fogo de um dos maiores impérios midiáticos do mundo, seu poder de vigiar e punir em causa própria não assume proporções de uma ameaça à democracia?
O conjunto remete à metáfora de uma sociedade panóptica.
Nela a presença de um poder ubíquo exerce sobre os cidadãos uma vigilância equivalente à do sentinela da torre no controle diuturno dos encarcerados.
A onipresença asfixiante do vigia que tudo enxerga e avalia deu ao francês Michel Foucault (1926-1984), autor de "Vigiar e Punir", a inspiradora metáfora para abordar a exasperação do controle social no século XX.
A torre do panóptico não assegura apenas a disciplina do sistema.
Sua perversidade consiste em aprisionar a subjetividade social tornando-a carcereira de suas próprias vontades.
Parece devaneio?
Quantas agendas o sistema político brasileiro não rebaixou ou protelou e protela (caso da regulação da mídia), para não se indispor com o poder de fogo da oceânica fortuna armada de irrespondível dispositivo emissor?
Essa invasiva capacidade de inocular agendas e interditar debates lubrificou, entre outras coisas, a imposição da cosmologia neoliberal no imaginário brasileiro nos anos 80/90.
Como não intuir o peso dos US$ 22,8 bilhões, por exemplo, na esférica oposição das Organizações Globo a uma reforma fiscal que taxe adicionalmente as grandes fortunas?
Ou na peroração incansável dos seus editoriais, a desafiar o Estado brasileiro ‘a fazer mais com menos’ – evocação à austeridade emitida do alto de uma montanha de dólares equivalente a 10% do PIB de Portugal?
Ou duas vezes o orçamento total do Bolsa Família que beneficia 50 milhões de brasileiros pobres.
Ainda: como elidir o interesse argentário da maratona vitoriosa dos seus veículos e disciplinados colunistas contra o imposto do cheque, em 2007?
A CPMF, recorde-se, de baixíssima alíquota, funcionava como um incômodo sensor de movimentações financeiras graúdas, nem sempre alinhadas à legalidade.
Foi decepada do orçamento brasileiro em 2007.
Um comparativo da OMS mostra o quanto há de perversidade na fotografia que imortalizou aquele ato, cometido na madrugada de 13 de dezembro, depois de encorajadora campanha sistemática das Organizações Globo & assemelhados.
A imagem estampada no jornal dos Marinhos no dia seguinte ao sacrifício, mostra a nata do retrocesso político, em festa obscena pela subtração de R$ 40 bilhões por ano à saúde pública.
A indecência, se panfletada nas filas do SUS, ainda guarda um teor de nitroglicerina para sublevar o país.
Mais com menos?
Segundo a OMS, o gasto público mundial per capita com a saúde chegou a US$ 571 por ano em 2010. Inclua-se nessa média os US$ 6 mil da Noruega e os US$ 4 per capita do Congo.
O valor brasileiro é de US$ 466/ano ( US$ 107 per capita ao final do governo FHC).
O deserto real é ainda mais árido: apenas 42% daquilo que o país gasta com saúde tem origem e destino público. Sai do governo e chega na fila do SUS, que atende mais de 75% da população.
Outros 58% só circulam entre os 25% que tem plano de saúde.
Os mesmos que gargalhavam na madrugada de 13 de dezembro de 2007 fuzilariam o ‘Mais Médicos’ seis anos depois, com igual despudor e patrocínio da mesma emissora & veículos da família mais rica do país.
É só uma ilustração do ardil que encurrala a sociedade em um labirinto de impasses e protelações angustiantes (veja o ensaio fotográfico de Roberto Brilhante sobre a ocupação ‘Copa do Povo’, em Itaquera, SP; nesta pág).
Cinicamente, o desespero é acolhidos pelo dispositivo dos Marinhos & assemelhados como uma evidência do malogro progressista na condução do desenvolvimento brasileiro.
Seria apenas um escárnio.
Não fosse, sobretudo, a moldura de uma campanha sucessória.
Através dela pretende-se incensar candidatos e agendas que preconizam adicionar ao desespero uma renúncia disfarçada de audácia.
Em nome de desobstruir canais que impedem o crescimento, preconiza-se recuar ainda mais o papel coordenador do Estado sobre a economia.
Um exemplo da ardilosa cicuta oferecida em favos de mel.
É sabido que o portfólio de investimentos dos Marinhos inclui uma bilionária carteira de ações da Petrobrás.
A república dos acionistas tem nos donos da Globo o porta-voz incansável de um sonho reprimido.
Qual?
‘Realizar’ depressa o valor potencial das maiores reservas de petróleo descobertas no planeta nos últimos 30 anos: o pré-sal, que Lula regulamentou e fundiu ao destino da sociedade pelo regime da partilha.
O nome do atalho cobiçado é petroleiras internacionais.
O método: remeter in bruto o óleo, sem refino.
E gerar caixa.
Uma dinheirama como nunca o mercado viu, nem verá.
A república dos dividendos saliva.
Ganharia duplamente se a Petrobrás deixasse de gastar como investidora universal da exploração, com pelo menos 30% em cada poço, como manda a lei.
A economia numa ponta engordaria as carteiras dos acionistas na outra.
A pilha de US$ 22,8 bilhões dos Marinhos subiria mais depressa.
Incharia, ademais, se o petróleo fosse bombeado direto para fora do país.
Sem alimentar impulsos industrializantes, sem investir em quatro refinarias ao mesmo tempo; sem expandir polos tecnológicos; sem engatar cadeias de equipamentos com elevados índices de nacionalização e prazos mais largos de exploração.
Tudo isso, afinal, que só gera corrupção e desperdício...
Nove em cada dez referências das Organizações Globo à Petrobrás são desse teor, muito embora a etatal tenha dado um lucro de R$ 23 bilhões em 2013.
Eles querem mais .
A república dos acionistas gostaria de ficar com o equivalente projetado para o fundo soberano, formado de royalties do pré-sal, que permitirá elevar a 10% do PIB o orçamento da educação pública, ademais de suprir lacunas da saúde brasileira.
Transitamos, como se vê, no campo da injeção de interesses direto na veia do noticiário.
A Sabesp, em São Paulo, conforme mostra reportagens do Viomundo e de Carta Maior, fez exatamente o que os Marinhos preconizam para a Petrobrás e para o Brasil.
Afastou o interesse público do comando estratégico da gestão.
Em vez de investir, tucanos distribuíram nos últimos anos cerca de R$ 500 milhões, em média, aos acionistas da empresa.
Sobrou para a sociedade o volume morto da Cantareira.
A partir deste domingo, as torneiras de milhões de residências estarão gotejando neoliberalismo líquido.
A sociedade que emergiu das conquistas sociais e econômicas acumuladas a partir de 2002 não cabe nos limites estreitos que essa lógica oferece.
Dito de outra forma.
A coexistência de um Brasil urgente, disposto a comandar seu próprio destino, é imiscível com a estrutura de riqueza e comunicação simbolicamente condensada no caricato papel que a família Marinho e seus negócios protagonizam no país.
Seu poder desmedido para manipular conflitos , desqualificar projetos e usufruir privilégios distorce e constrange as vozes que precisam ser ouvidas nesse Rubicão da nossa história.
A travessia só se completará de forma emancipadora se o campo progressista souber erguer linhas de passagem feitas de reformas, prazos e metas críveis aos olhos da população.
Trata-se de estender o horizonte da sociedade para além do volume morto, ao qual os campeões da Forbes gostariam de circunscrevê-la.
E começar por dizê-lo, claramente, nesta campanha eleitoral.