Economia
Nafta
O mariachi paga a conta do Nafta duas décadas depois
Após implementação do Acordo de Livre Comércio da
América do Norte, o México bate recordes de pobreza e tem pouco a
comemorar em razão da medida
Yuri Cortez / AFP
Músicos tocam em tributo a Gabriel Garcia Marquez, na cidade do México, em 21 de abril. O Nafta afeta o país
Pouco a comemorar, muito a
lamentar. A síntese parece apropriada para definir os resultados de 20
anos de implementação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte
(Nafta, em inglês) entre Estados Unidos, México e Canadá, especialmente
para o país latino. Assinado em 1992 pelos presidentes George H. W. Bush
e Carlos Salinas de Gortari e o primeiro-ministro Brian Mulroney, foi
apresentado como o maior acordo comercial do mundo em termos de paridade
de poder de compra.
A eliminação de barreiras comerciais e financeiras
iniciada em 1994 abriria um caminho de prosperidade para as sociedades
dos três países, previam os seus proponentes. O Instituto Peterson de
Economia Internacional, think tank de Washington,
projetava a partir do Nafta a produção de um superávit comercial para os
Estados Unidos e de “grandes benefícios” à economia mexicana.
A realidade não confirmou esse otimismo,
dizem Mark Weisbrot, Stephan Lefebvre e Joseph Sammut, do Centro de
Pesquisas em Economia e Política, dos Estados Unidos, no texto “Terá o
Nafta ajudado o México? Uma avaliação após 20 anos”. O crescimento do
PIB per capita real, a medida mais básica do padrão de vida, caiu de 98,7%
no período desenvolvimentista de 1960 a 1980 para 18,6% nos últimos 20
anos.
O desempenho pífio corresponde a cerca de metade do restante da
América Latina. Segundo estatísticas do governo mexicano, a taxa de
pobreza de 52,3% em 2012 (último ano com dados disponíveis) é
praticamente a mesma de 1994. O resultado são mais 14,3 milhões
mexicanos abaixo da linha de pobreza desde a implantação do acordo.
A remuneração real
dos assalariados estagnou. Em 2012, os salários, descontada a inflação,
eram praticamente os mesmos pagos em 1994. O desemprego passou de 3,1%
entre 1990 e 1994 para 5% hoje. No campo, o resultado é desolador. O
milho e outros produtos agrícolas produzidos com altíssima tecnologia em
megapropriedades dos Estados Unidos invadiram o território mexicano e
varreram 4,9 milhões de agricultores dedicados à produção para o
sustento de suas famílias.
Desprovidos do seu meio de vida e da tradição
sociocultural ligada ao cultivo de diversas espécies de milho,
associado às do feijão e da abóbora, restou a esses indivíduos disputar
trabalho temporário nas agroindústrias voltadas para a exportação. Mas
esse setor absorveu só 3 milhões deles em ocupações sazonais e o 1,9
milhão restante viu-se obrigado a migrar para as cidades em busca de
empregos em geral de baixa qualidade, bicos, ou tentar a sorte nos
Estados Unidos. O número de emigrantes aumentou 79% entre 1994 e 2000 e a
quantidade de mexicanos residentes nesse país saltou de 4,5 milhões, em
1990, para 12,6 milhões, em 2009.
A decisão de atrelar o destino da
economia e da sociedade mexicanas ao do país mais poderoso do mundo teve
custos adicionais em resultado tanto de crises econômico-financeiras
quanto do aumento da participação da China no comércio mundial nas
últimas duas décadas.
A elevação das taxas de juro pelo Federal Reserve
em 1994 fez o PIB mexicano cair 9,5%. Entre 2000 e 2002, o México foi um
dos países mais afetados pelo estouro da bolha das empresas pontocom,
de internet e tecnologia, e mergulhou em uma recessão. Voltou a desabar
em 2008, na maior crise desde a Grande Depressão dos anos 1930 e saiu
com um PIB 6,7% menor.
Em maio de 2013, quando o FED anunciou a futura
reversão da política de aumento da liquidez da economia (quantitative easing),
investidores estrangeiros temeram a repetição da crise do peso de 1994 e
interromperam bruscamente a canalização de recursos para o país.
O FMI
alertou para o risco de o México atrair capitais especulativos de curto
prazo, se houvesse turbulência financeira mundial, e tornar-se
suscetível a crises por contágio. “Uma vulnerabilidade resultante de
políticas que o Nafta foi desenhando para facilitar”, disseram Weisbrot,
Lefebvre e Sammut a respeito da avaliação do FMI.
As vulnerabilidades
trazidas pelo acordo acentuaram-se a partir de 2001, quando a China
ingressou na OMC e passou a usufruir de facilidades semelhantes àquelas
do país latino-americano no comércio com os Estados Unidos. Em 2009, a
China ganhava e o México perdia mercado em relação a 84% das manufaturas
exportadas para aquele país, concluíram Devin Gallagher, da
Universidade de Boston, e Enrique Dussel, professor da Universidade
Autônoma do México, em um estudo intitulado “Como a China acabou com a
festa do Nafta”. Em 2000, China e México supriam 5% do mercado de
computadores dos EUA.
Em 2009, os chineses dominavam mais da metade das
exportações do produto e a fatia dos mexicanos era igual a zero. A
cadeia de produção de vestuário “está simbolicamente perdendo mais de
50% dos seus empregos desde 2000” e a situação nos setores de móveis e
brinquedos é semelhante. A exceção é a exportação de automóveis,
favorecida, entre outros motivos, pelo fato de a China absorver sua
produção e não ter, no momento, grande poder de fogo para vender a
outros países.
Maiores perdedores, o
México e os mexicanos não são os únicos prejudicados com o acordo,
mostra um balanço feito por Carlos Salas, da Universidade Autônoma do
México, Robert E. Scott, do Instituto de Política Econômica dos Estados
Unidos, e Bruce Campbell, do Centro Canadense para Políticas
Alternativas.
Os pesquisadores analisaram os resultados do Nafta para os
trabalhadores dos três países até 2006. Em todos eles, a parcela dessa
parte da sociedade nos ganhos de produtividade diminuiu e a proporção do
lucro e da riqueza apropriada pelos situados no topo da pirâmide
cresceu. Nos Estados Unidos, ao contrário do prometido pelo governo, não
houve criação de empregos em grande quantidade. Ocorreu o oposto: em
consequência do tratado, foram eliminados 1 milhão de postos de
trabalho.
No Canadá, exceto para os situados na faixa de renda mais
alta, os ganhos reais estagnaram. As regras do acordo protegem os
interesses dos investidores, de grandes corporações e reduzem os
direitos trabalhistas, a proteção ao meio ambiente e os direitos
democráticos, concluíram os pesquisadores.
O risco de uma experiência semelhante
rondou o Brasil. Empolgados com a assinatura do Nafta, os Estados Unidos
propuseram no mesmo ano um pacto semelhante para a criação da Área de
Livre Comércio das Américas, com eliminação das barreiras tarifárias
entre os 34 países do continente.
A proposta americana apresentada pelo
presidente Bill Clinton não empolgou. No caso do Brasil, as exportações
aumentariam em 1,2 bilhão de dólares, mas as importações cresceriam em
2,2 bilhões, concluíram os pesquisadores Honório Kume e Guida Piani em
estudo do Ipea. Outros países chegaram a conclusões semelhantes e em
2005, na 4ª Cúpula das Américas, a proposta foi retirada de pauta.
Na história do Nafta, o México foi também
vítima de si próprio. “A iniciativa do tratado não foi dos Estados
Unidos nem do Canadá, mas do governo mexicano, que se aproximou do
americano no início dos anos 1990 para discutir essa possibilidade”, diz
Carlos Salas, hoje aposentado da Unam, professor do Instituto de
Economia da Unicamp e integrante do Centro de Estudos Sindicais e de
Economia do Trabalho.
O acordo acentuou a dependência econômica dos
Estados Unidos e dificultou a quebra da hegemonia política conservadora
no México. A produção industrial aumentou, mas isso não abriu caminho
para o desenvolvimento. “Muitos da nossa geração provêm da classe média
baixa ou de famílias de trabalhadores e ascenderam socialmente. Para
nossos filhos e netos, essa possibilidade é quase nula. Há uma perda de
esperança da população.”
Um tratado inspirado em acordos europeus,
como os realizados por Itália, Irlanda, Espanha, Portugal e Polônia
entre as décadas de 1960 e 1990, teria funcionado melhor para o México,
afirma Jorge G. Castañeda, professor da Universidade de Nova York,
ex-ministro do Exterior e, quem diria, um dos entusiastas do
neoliberalismo dos anos 1990.