Quebrando o silêncio na Ucrânia: uma guerra mundial está na esquina
Publicado originalmente no Asia Times Online.
POR JOHN PILGER (repórter desde 1958, ganhador do prêmio Britain’s Journalist of the Year na área dos Direitos Humanos, correspondente de guerra no Vietnã, Camboja e Biafra)
Por que toleramos a ameaça de mais uma guerra
mundial em nosso nome? Por que permitimos todas as mentiras que
justificam esse risco? A escala em que somos doutrinados,
escreveu Harold Pinter, é:
(…) “brilhante, inteligente, se se pode dizer, uma encenação muito
bem sucedida de hipnose coletiva”, como se “os fatos jamais tivessem
acontecido, mesmo que estivessem acontecendo à nossa vista”.
Todos os anos, o historiador norte-americano William Blum
publica seu “sumário atualizado dos feitos da política externa dos EUA”,
que mostra que, desde 1945, os EUA já tentaram derrubar mais de 50
governos, muitos dos quais democraticamente eleitos; interferiram
pesadamente em eleições em 30 países; bombardearam populações civis em
30 países; usaram armas químicas e biológicas; e tentaram assassinar
líderes estrangeiros.
Em muitos casos, a Grã-Bretanha trabalhou ao lado dos EUA como
colaboradora. O grau de sofrimento humano, para nem falar da
criminalidade, é apagado no Ocidente, apesar de aí estarem ativos os
sistemas mais avançados de comunicações e, supostamente, o jornalismo
mais “livre” do planeta. É absolutamente proibido noticiar que o maior
número de vítimas de ações terroristas não são “ocidentais”, mas, sim,
muçulmanos.
Esse jihadismo extremo, que levou ao 11/9, foi nutrido como arma de
política anglo-norte-americana (“Operação Ciclone” no Afeganistão). Em
abril, o Departamento de Estado observou que, depois da campanha da
Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, em 2011, “a Líbia foi
convertida em paraíso seguro para terroristas”.
O nome do “nosso” inimigo mudou ao longo dos anos: de comunismo, para
islamismo, mas, em geral, qualquer sociedade independente da potência
ocidental, que ocupe território considerado estrategicamente relevante
ou rico em recursos a saquear, é “inimigo” dos EUA e da Grã-Bretanha. Os
líderes dessas nações obstrutivas são em geral varridos do mundo em
ação criminosa, como os democratas Muhammad Mossadeq, no Irã e Salvador
Allende, no Chile; ou são assassinados como Patrice Lumumba no Congo. E
todos somos submetidos a uma campanha, conduzida mediante as estruturas
do jornalismo da imprensa-empresa que conhecemos, para caricaturar e
vilificar o homem da hora, seja quem for: Fidel Castro, Hugo Chavez;
agora, como se vê, Vladimir Putin.
O papel de Washington na Ucrânia só é diferente nas implicações que
tem para o resto do mundo. Pela primeira vez, desde os anos Reagan, os
EUA estão ameaçando arrastar o mundo à guerra. Com o leste da Europa e
os Bálcãs agora convertidos em entrepostos militares da OTAN, o último
estado “tampão” junto às fronteiras russas está sendo detonado. Nós – o
“ocidente”, tão orgulhoso de sua “civilização” e dos seus valores –
estamos apoiando neonazistas, num país onde os nazistas ucranianos
apoiaram Hitler.
Tendo cerebrado o golpe de fevereiro contra o governo
democraticamente eleito em Kiev, Washington planejou tomar para ela a
base naval russa de águas temperadas, legítima e histórica, na Crimeia.
Mas o plano fracassou. Os russos defenderam-se – como sempre se
defenderam contra todas as ameaças e invasões do ocidente, sempre, há
quase um século. Mas o cerco militar que a OTAN tenta foi acelerado,
combinado a ataques orquestrados pela CIA e pelo FBI-EUA contra russos
étnicos na Ucrânia.
Se conseguirem arrastar Putin para uma guerra provocada, em defesa
daqueles russos, essa função de “estado pária” será utilizada como
pretexto para desencadear uma guerra de guerrilhas que a OTAN fará
crescer enquanto puder, até que respingue no próprio território russo.
Putin, contudo, pôs o partido da
guerra a andar em círculos, feito peru bêbado, ao procurar acomodação e
acordo com Washington e com a União Europeia; e retirou seus soldados da
fronteira ucraniana, conclamando os russos étnicos no leste da Ucrânia a
desistir do referendo planejado, interpretado como ação de provocação.
Esses falantes de russo e bilíngues – um terço da população da Ucrânia –
há muito tempo procuram organizar uma federação democrática que reflita
a diversidade étnica do país e que seja, simultaneamente, autônoma e
independente de Moscou. A maioria deles não são nem “separatistas” nem
“rebeldes”, mas cidadãos que aspiram a viver em paz e segurança na
própria terra.
Como as ruínas hoje do Iraque e do Afeganistão, a Ucrânia também foi transformada em parque temático da CIA – comandado pelo diretor John Brennan em Kiev, com “unidades especiais” de CIA e FBI montando
a “estrutura de segurança” que supervisiona os ataques mais selvagens
contra os que se opõem, lá, ao golpe de fevereiro.
Bandidos fascistas queimaram o prédio da sede do sindicato, matando
41 pessoas que foram presas lá dentro, enquanto o prédio era incendiado.
Assistam ao que fez a Polícia, parada, assistindo ao “espetáculo”. Um
médico contou que tentou desesperadamente tirar as pessoas presas no
prédio, “mas fui impedido por radicais nazistas ucranianos. Um deles
empurrou-me com violência, gritando que, em breve, outros judeus de
Odessa teriam também o mesmo destino… Não entendo por que o mundo
inteiro continua em silêncio!”
Os ucranianos falantes de russo estão lutando pela vida. Quando Putin
anunciou a retirada dos soldados russos da fronteira, o secretário de
“defesa” da junta neonazista de Kiev – e membro fundador do partido
fascista Svoboda – pôs-se a esbravejar que os “insurgentes” não
arredariam pé. Em seu típico estilo orwelliano, a propaganda ocidental
inverteu tudo e “noticiou” que “Moscou tenta orquestrar novos conflitos e
provocações” – foram as palavras do secretário britânico de Relações
Exteriores, o lastimável William Hague. Foi cinismo só comparável às
grotescas “congratulações” que Obama enviou à junta neonazista, pela
“notável contenção” que manifestou… depois do massacre de Odessa!
É junta ilegal e dominada por fascistas. Para Obama, foi “devidamente
eleita”. O que conta – como Henry Kissinger disse certa vez, não é a
verdade, mas o que alguém supõe que seja a verdade.
Nos veículos da imprensa-empresa norte-americana, a atrocidade de
Odessa foi descrita como “triste” e “feia” e “uma tragédia” na qual
“nacionalistas (de fato, são neonazistas) atacaram “separatistas” (de
fato, eram pessoas que recolhiam assinaturas a favor de um referendo a
favor da federalização da Ucrânia).
Na Alemanha, a propaganda foi pura guerra fria, com o Frankfurter Allgemeine Zeitung alertando
os leitores contra “a guerra russa não declarada”. Para os alemães, é
apenas ironia histórica que Putin seja o único líder em todo o planeta a
condenar o ressurgimento do fascismo na Europa do século XXI.
Há quem repita que “o mundo mudou depois do 11/9”. Mas… o que mudou?
Segundo o grande alertador-vazador Daniel Ellsberg, houve um golpe
silencioso em Washington e, depois daquele dia, o país é governado por
militarismo rampante. O Pentágono só faz comandar “operações especiais” –
guerras secretas – em 124 países.
Em casa (nos EUA), o que se vê é miséria crescente e a morte da
liberdade por hemorragia – duas consequências históricas de um estado em
guerra perpétua. Acrescente-se o risco real de guerra nuclear, e a
questão se impõe: por que nós, cidadãos do mundo, toleramos os EUA?