
Muitos já afirmaram que desconhecer a história é dar caminho a repetir erros em nossas vidas e cidadania. É verdade...
Por isso, hoje publicamos um texto divulgado pela Agência Carta Maior, assinado por Laurindo Lalo Leal que mostra o quanto hoje se vive um clima que pode nos levar a repetir época triste da história recente do País.
Da Agência Carta Maior
Laurindo Lalo Leal
Apesar do desfecho trágico que levou o
Brasil a uma ditadura sanguinária, em termos de mídia estávamos melhor
naquela época do que hoje.
"Dia 1º de abril de 1964. Cinelândia,
Rio de Janeiro. Em frente ao Clube Militar, um garoto de 12 anos começa a
gritar 'Jangooo', 'Jangooo'. Um homem alto e magro, cabelo cortado
recente, bigodes finos, aponta a sua automática e explode a cabeça do
menino. Nesse dia eu era diretor de jornalismo da Rede Excelsior de
Televisão, na época líder absoluta de audiência.
Nessa mesma noite de 1º
de abril, no Jornal de Vanguarda, a cena foi ao ar", lembra Fernando
Barbosa Lima no livro Gloria in Excelsior escrito por Álvaro de Moya.
Era o início de uma longa ditadura e o
começo do fim da única rede de televisão brasileira que, um dia,
alinhou-se a um projeto nacional de desenvolvimento autônomo liderado
pelo presidente João Goulart.
O Jornal de Vanguarda, havia sido
premiado pela Eurovisão, a rede europeia de televisões públicas, como
melhor do mundo no seu gênero, superando os programas de notícias da BBC
de Londres. Com recursos e independência, a Excelsior criava um novo
padrão de qualidade para a TV brasileira, copiado depois pela Globo.
Ao tiro na Cinelândia seguiu-se a
invasão da emissora por policiais armados e a derrocada de um império
comandado pelo empresário Mário Wallace Simonsen. Figura esquecida
intencionalmente pela mídia de hoje já que sua lembrança destroi a lenda
golpista de que o Brasil de Jango caminhava para o comunismo.
O dono da Excelsior, e também da
Panair do Brasil e da maior empresa exportadora de café do pais, a
Comal, de comunista não tinha nada. Tinha, isso sim, convicção que seus
negócios só prosperariam se o país crescesse de forma independente,
livre do jugo imposto pelos Estados Unidos. Disputava o mercado
internacional do café com o grupo Rockfeller.
Esteve ao lado da ordem democrática
durante os governos Juscelino, Jânio e Jango. Mandou um avião da Panair
buscar o vice-presidente Goulart em Pequim, durante a crise da renúncia
de Jânio em 1961 e hospedou-o em seu apartamento de Paris, durante uma
das escalas da longa viagem. Os golpistas nunca o perdoaram.
Os projetos de reformas de base
enviadas por Jango ao Congresso, em março de 1964, se efetivados,
encaminhariam o Brasil para o patamar de "potência independente, com
ascendência sobre a América Latina e a África" no dizer do sociólogo
Octavio Ianni no livro 'O colapso do populismo no Brasil'.
A essa política se contrapôs, com o
golpe, um modelo de capitalismo associado e dependente mantendo o Brasil
na condição de satélite da órbita centralizada pelos Estados Unidos.
Coube à mídia dar respaldo à subserviência, sem o qual a ação dos
golpistas e depois a da ditadura, teria sido mais árdua.
No centro desse processo, como
coordenador do trabalho de conquista dos corações e mentes da sociedade,
estavam o Instituto de Pesquisas Sociais, o IPES e o Instituto de Ação
Social, o IBAD. Um complexo de produção ideológica que "publicava
diretamente ou através de acordo com várias editoras, uma série extensa
de trabalhos, incluindo livros, panfletos periódicos, jornais, revistas e
folhetos. Saturava o rádio e a televisão com suas mensagens políticas e
ideológicas", como mostra a pesquisa de Rene Armand Dreifuss, publicada
no livro '1964: a conquista do Estado'.
A máquina da desinformação, azeitada
por recursos captados nas elites empresariais pagava os donos de
jornais, rádios e TVs ou diretamente os jornalistas, executores das
pautas de interesse dos golpistas.
É precioso o relato de Rene Dreyfuss
ao demonstrar como "o IPES organizava equipes de 'manipuladores de
notícias' que preparavam e compilavam material sob a coordenação geral
do general Golbery do Couto e Silva, especialista em guerra psicológica.
Esses manipuladores se responsabilizavam pelas 'campanhas de pânico'. A
'campanha da ameaça vermelha' empreendida pelo IPES mostrou-se muito
útil na melhoria de sua situação financeira, já que atraiu contribuições
de empresários tomados de pânico e profissionais que temiam o futuro".
Segundo Dreyfuss, "eram também
'feitas' em O Globo notícias sem atribuição de fonte ou indicação de
pagamento e reproduzidas como informação factual. Dessas notícias, uma
que provocou um grande impacto na opinião pública foi a de que a União
Soviética imporia a instalação de um Gabinete Comunista no Brasil,
exercendo todas as formas de pressões internas e externas para aquele
fim".
O envenenamento simbólico de parte da
população era feito com muita competência e a própria mídia apresentava
possíveis antídotos, além do golpe que estava sempre presente no
horizonte.
Sem registros históricos, um desses
antídotos só não é risível porque o momento não estava para
brincadeiras. A TV Paulista e a Rádio Nacional de São Paulo, que depois
seriam vendidas para as Organizações Globo, numa operação até hoje
contestada na justiça, propiciaram um espetáculo bizarro na semana santa
que antecedeu o golpe.
O apresentador do programa de rádio
diário, "A hora da Ave Maria", Pedro Geraldo Costa, foi a Jerusalém às
expensas das emissoras e de lá trouxe uma cruz enorme de madeira que
chegou ao Rio de Janeiro de avião e seguiu em peregrinação para São
Paulo trafegando lentamente pela via Dutra, com uma parada simbólica em
Aparecida. Nas proximidades da capital foi içada por um helicóptero e
suavemente depositada no Vale do Anhangabaú em meio a multidão convocada
pelo rádio e pela TV para orar junto à cruz pelo país. Episódio
esquecido que, no entanto, se articula com as marchas religiosas e
golpistas do período, insufladas pela mídia.
Como depois as pesquisas do Ibope
mostraram, essas multidões arregimentadas pelo conluio igreja-meios de
comunicação representavam parcelas minoritárias da população. A maioria
apoiava o governo Jango e a sua política reformista. Mas até hoje,
passados 50 anos, o golpe ainda é apresentado pela mesma mídia como
tendo sido respaldado pelo povo. Foi apenas por aqueles que se deixaram
levar pela insidiosa campanha midiática do início dos anos 1960.
Apesar do desfecho trágico que levou o
Brasil a uma ditadura sanguinária, em termos de mídia estávamos melhor
naquela época do que hoje. Nas bancas, a Última Hora era a alternativa
aos jornais reacionários, a TV Excelsior abria espaço para o
contraditório e algumas emissoras de rádio mantinham-se alheias as
pressões golpistas, como a 9 de Julho de São Paulo, cassada pela
ditadura.
Hoje nem isso temos possibilitando que
apenas uma versão, a dos golpistas, continue circulando pela mídia
tradicional. O "esquecimento" de figuras como a de Mário Wallace
Simonsen e de episódios como a da cruz que veio de Jerusalém são
propositais. Se lembrados poriam em cheque a ameaça comunista e o apoio
espontâneo das massas ao golpe.
Versões distorcidas, bem ao gosto do
Instituto Millenium que está ai como um fantasma a lembrar alguns traços
assustadores dos antigos IPES e do IBAD.