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quarta-feira, 16 de abril de 2014

Os nomes do atraso...

O "Jornal do Brasil" Online publica uma interessante e esclarecedora análise do cientista político Marcus Ianoni que vale para uma reflexão nestes dias que antecedem o feriadão da Semana Santa: 




Reforma e contra-reforma: quem ataca Dilma e por quê

Marcus Ianoni
Desde 2003, com Lula, o Brasil ingressou na fase mais importante de sua história. Pela primeira vez, as transformações modernizadoras se dão não apenas em contexto democrático, pois isso ocorreu também no período entre 1946 e 1964, mas, sobretudo, em um ambiente político no qual as organizações efetivamente próprias dos trabalhadores, a começar pelo PT e pela CUT, fazem parte da liderança do processo de mudança social. Dilma deu prosseguimento às mudanças iniciadas com Lula, mas vem sendo objeto de ataques variados. Quem ataca a presidente e por que motivo o faz? A resposta requer identificar os interesses em disputa e os atores envolvidos.

Todo processo de desenvolvimento apoia-se em coalizões. Assim foi desde o mercantilismo, política econômica implementada durante as Revoluções Inglesas do século XVII (Puritana e Gloriosa), que conduziram a Inglaterra à Revolução Industrial pioneira e à condição de principal potência mundial no século XIX, passando pela coalizão bismarckiana, que industrializou a então atrasada Alemanha. Na Inglaterra mercantilista a coalizão envolveu grandes proprietários de terras e a classe média urbano-comercial, incluindo os interesses financeiros. Na Alemanha, a aliança foi entre elites da burocracia governamental civil e militar, grandes proprietários rurais e a nascente burguesia industrial. 

Os exemplos prosseguem no século XX, nas experiências dos Estados desenvolvimentistas do Leste da Ásia, nas quais, grosso modo, em um primeiro momento, as coalizões vincularam a burocracia governamental aos empresários. Os regimes políticos (democracia, autoritarismo, fascismo) têm muito a ver com as alianças e relações de força existentes no percurso dessas rotas. Nos três grandes casos mencionados, um perdedor claro foi o interesse agrário pré-capitalista, feudal, as relações senhoriais no campo, o uso não capitalista da terra. Por outro lado, um ganhador foi o interesse industrialista da burguesia. 

Toda transformação social, como é o caso da revolução burguesa, envolve lutas entre classes e frações, resistências contra-revolucionárias, mudança social progressiva e regressiva, reforma e contra-reforma, enfim, contradições.

No Brasil atual, após duas décadas perdidas (anos 1980 e 1990), a crise das políticas neoliberais – implementadas como alternativa ao falido nacional-desenvolvimentismo –, e a existência do PT, da CUT e demais organizações e partidos populares, como MST, UNE, PCdoB etc, presentes na cena política desde a redemocratização, ensejaram a vitória de Lula e a mudança na relação de forças. 



As políticas governamentais, não sem dificuldades e contradições, passaram a perseguir o investimento produtivo do capital, para gerar emprego e renda, e o combate às desigualdades sociais e à exclusão, estas últimas através de um amplo leque de políticas, como o aumento do salário mínimo, Bolsa Família, REUNI, PROUNI, Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos, Territórios da Cidadania, Mais Médicos, Pronatec e assim por diante. Na verdade, Lula e Dilma implementaram políticas de reforma, com base em uma coalizão entre capital produtivo e trabalho assalariado. Mas, à reforma opõem-se as forças da contra-reforma.

Na campanha eleitoral de 2002 e no início de seu mandato, Lula foi vítima de um conjunto de preconceitos, pela sua origem social pobre e nordestina, por não ter diploma de nível superior, por não falar inglês, por sua posição ideológica (petista) etc. 

Os feitos de seu governo, sua reeleição e grande popularidade, a ponto de ser considerado um mito da política, fizeram com que a face mais visível desse preconceito, ainda existente, recuasse. Mas agora, em 2014, quando haverá novas eleições gerais e um quarto mandato governamental social-desenvolvimentista poderá existir, a artilharia é direcionada contra Dilma, que, na campanha de 2010, já havia sido bombardeada com a preconceituosa imagem de que seria um “poste” de Lula. O preconceito maior é contra o PT.

  Quem é o exército da contra-reforma que atacou Lula e agora ataca Dilma? Em primeiro lugar, são os rentistas que investem nos ativos financeiros, entre os quais (mas não só) estão os títulos da dívida pública, que são indexados pela taxa básica de juros, a Selic. 

Se nos anos FHC a média da Selic ficou acima dos 20%, caiu para 15% nos anos Lula e para 10%, com Dilma. Ou seja, no balanço geral, o rentismo com os títulos do Tesouro Nacional perdeu terreno, embora ele ainda seja muito forte, pois, apesar da crise que o neoliberalismo causou, em 2008, na economia internacional, os interesses da financeirização ainda têm bases estruturais no capitalismo mundial e nacional, sobretudo devido à globalização financeira, que mantém o livre fluxo de capitais e se opõe aos mecanismos de controle e regulamentação. 

O Brasil também está inserido no circuito de valorização financeirizada e especulativa do capital. As ações de Dilma visando implementar gradualmente uma política macroeconômica mais favorável ao social-desenvolvimentismo, a começar pelo maior alinhamento do Banco Central com os objetivos de geração de emprego e renda, embora sem descuidar do controle da inflação, mobilizam a ira dos rentistas e de seus aliados na grande mídia e em estratos das classe médias ideologicamente apegados às ideias neoliberais e individualistas.

Além dos rentistas, grande mídia e estratos neoliberais das classes médias, quem mais compõe a coalizão da contra-reforma? Os grupos financistas, que intermediam a riqueza dos rentistas, ou seja, as instituições financeiras que ainda apostam no caminho do ganho fácil, com os recursos dos cofres públicos, a começar pelos grandes bancos. Lula e Dilma não puderam acabar com a financeirização, pois ela é um fenômeno estrutural do capitalismo e sua superação não depende apenas de atos isolados de vontade política de governantes nacionais, mesmo considerando que há alguma margem de manobra para os países agirem. 

Mas eles avançaram, entre outros, induzindo as instituições financeiras à maior oferta de crédito para o consumo das famílias e a produção, pessoas físicas e jurídicas, colocando à frente dessa perspectiva os bancos públicos federais (BNDES, BB e CEF). 

A oferta de crédito entre junho de 2003 e junho de 2013 cresceu 564%, tendo ido a relação crédito/PIB, no mesmo período, de 24,7% para 55,2%, ao passo que a inadimplência caiu 5,2%.

Não por motivos contra-reformistas, mas por aspirações socialistas de curto prazo e insustentáveis, os esquerdistas também criticam Dilma. Querem mais e mais (e quem não quer?) e desprezam o que é feito. Por exemplo, na educação universitária, são contra o REUNI, que expandiu muito o ensino federal superior no Brasil. Acabam fazendo coro com a oposição institucional, com PSDB, DEM, PPS e, agora, com a coligação PSB-Rede. 

Como nunca antes na história do Brasil o ótimo é tão inimigo do bom. Mesmo em um contexto de crise internacional, em 2013, o Brasil alcançou o terceiro lugar em crescimento econômico, em um ranking envolvendo 13 países desenvolvidos e emergentes. Cresceu 2,3%, abaixo apenas de China (7,7%) e Coreia do Sul (2,6%). 

  No fundo, há uma disputa pelos recursos orçamentários, humanos e organizacionais do Estado: eles devem servir a quais interesses e a qual modelo econômico? Dilma é atacada, principalmente, para que a reforma social já feita e que os manifestantes de junho desejam aprofundar seja interrompida e algumas minorias milionárias possam apostar nos ganhos propiciados pela contra-reforma neoliberal. 

*Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política daUniversidade Federal Fluminense (UFF)e pesquisador das relações entre Política e Economia.