O "Jornal do Brasil" Online publica uma interessante e esclarecedora análise do cientista político Marcus Ianoni que vale para uma reflexão nestes dias que antecedem o feriadão da Semana Santa:
Reforma e contra-reforma: quem ataca Dilma e por quê
Desde 2003, com Lula, o Brasil
ingressou na fase mais importante de sua história. Pela primeira vez,
as transformações modernizadoras se dão não apenas em contexto
democrático, pois isso ocorreu também no período entre 1946 e 1964, mas,
sobretudo, em um ambiente político no qual as organizações efetivamente
próprias dos trabalhadores, a começar pelo PT e pela CUT, fazem parte
da liderança do processo de mudança social. Dilma deu prosseguimento às
mudanças iniciadas com Lula, mas vem sendo objeto de ataques variados.
Quem ataca a presidente e por que motivo o faz? A resposta requer
identificar os interesses em disputa e os atores envolvidos.
Todo processo de desenvolvimento apoia-se em coalizões. Assim foi desde
o mercantilismo, política econômica implementada durante as Revoluções
Inglesas do século XVII (Puritana e Gloriosa), que conduziram a
Inglaterra à Revolução Industrial pioneira e à condição de principal
potência mundial no século XIX, passando pela coalizão bismarckiana, que
industrializou a então atrasada Alemanha. Na Inglaterra mercantilista a
coalizão envolveu grandes proprietários de terras e a classe média
urbano-comercial, incluindo os interesses
financeiros. Na Alemanha, a aliança foi entre elites da burocracia
governamental civil e militar, grandes proprietários rurais e a nascente
burguesia industrial.
Os exemplos prosseguem no século XX, nas
experiências dos Estados desenvolvimentistas do Leste da Ásia, nas
quais, grosso modo, em um primeiro momento, as coalizões vincularam a
burocracia governamental aos empresários. Os regimes políticos
(democracia, autoritarismo, fascismo) têm muito a ver com as alianças e
relações de força existentes no percurso dessas rotas. Nos três grandes
casos mencionados, um perdedor claro foi o interesse agrário
pré-capitalista, feudal, as relações senhoriais no campo, o uso não
capitalista da terra. Por outro lado, um ganhador foi o interesse
industrialista da burguesia.
Toda transformação social, como é o caso da
revolução burguesa, envolve lutas entre classes e frações, resistências
contra-revolucionárias, mudança social progressiva e regressiva,
reforma e contra-reforma, enfim, contradições.
No
Brasil atual, após duas décadas perdidas (anos 1980 e 1990), a crise das
políticas neoliberais – implementadas como alternativa ao falido
nacional-desenvolvimentismo –, e a existência do PT, da CUT e demais
organizações e partidos populares,
como MST, UNE, PCdoB etc, presentes na cena política desde a
redemocratização, ensejaram a vitória de Lula e a mudança na relação de
forças.
As políticas governamentais, não sem dificuldades e
contradições, passaram a perseguir o investimento produtivo do capital,
para gerar emprego e renda, e o combate às desigualdades sociais e à
exclusão, estas últimas através de um amplo leque de políticas, como o
aumento do salário mínimo, Bolsa Família, REUNI, PROUNI, Minha Casa
Minha Vida, Luz para Todos, Territórios da Cidadania, Mais Médicos,
Pronatec e assim por diante. Na verdade, Lula e Dilma implementaram
políticas de reforma, com base em uma coalizão entre capital produtivo e
trabalho assalariado. Mas, à reforma opõem-se as forças da
contra-reforma.
Na campanha eleitoral de 2002 e no início
de seu mandato, Lula foi vítima de um conjunto de preconceitos, pela sua
origem social pobre e nordestina, por não ter diploma de nível
superior, por não falar inglês, por sua posição ideológica (petista)
etc.
Os feitos de seu governo, sua reeleição e grande popularidade, a
ponto de ser considerado um mito da política, fizeram com que a face
mais visível desse preconceito, ainda existente, recuasse. Mas agora, em
2014, quando haverá novas eleições gerais e um quarto mandato
governamental social-desenvolvimentista poderá existir, a artilharia é
direcionada contra Dilma, que, na campanha de 2010, já havia sido
bombardeada com a preconceituosa imagem de que seria um “poste” de Lula.
O preconceito maior é contra o PT.
Quem é o exército da
contra-reforma que atacou Lula e agora ataca Dilma? Em primeiro lugar,
são os rentistas que investem nos ativos financeiros, entre os quais
(mas não só) estão os títulos da dívida pública, que são indexados pela
taxa básica de juros, a Selic.
Se nos anos FHC a média da Selic ficou
acima dos 20%, caiu para 15% nos anos Lula e para 10%, com Dilma. Ou
seja, no balanço geral, o rentismo com os títulos do Tesouro Nacional
perdeu terreno, embora ele ainda seja muito forte, pois, apesar da crise
que o neoliberalismo causou, em 2008, na economia internacional, os
interesses da financeirização ainda têm bases estruturais no capitalismo
mundial e nacional, sobretudo devido à globalização financeira, que
mantém o livre fluxo de capitais e se opõe aos mecanismos de controle e
regulamentação.
O Brasil também está inserido no circuito de valorização
financeirizada e especulativa do capital. As ações de Dilma visando
implementar gradualmente uma política macroeconômica mais favorável ao
social-desenvolvimentismo, a começar pelo maior alinhamento do Banco
Central com os objetivos de geração de emprego e renda, embora sem
descuidar do controle da inflação, mobilizam a ira dos rentistas e de
seus aliados na grande mídia e em estratos das classe médias
ideologicamente apegados às ideias neoliberais e individualistas.
Além dos rentistas, grande mídia e estratos neoliberais das classes
médias, quem mais compõe a coalizão da contra-reforma? Os grupos
financistas, que intermediam a riqueza dos rentistas, ou seja, as
instituições financeiras que ainda apostam no caminho do ganho fácil,
com os recursos dos cofres públicos, a começar pelos grandes bancos.
Lula e Dilma não puderam acabar com a financeirização, pois ela é um
fenômeno estrutural do capitalismo e sua superação não depende apenas de
atos isolados de vontade política de governantes nacionais, mesmo
considerando que há alguma margem de manobra para os países agirem.
Mas
eles avançaram, entre outros, induzindo as instituições financeiras à
maior oferta de crédito para o consumo das famílias e a produção,
pessoas físicas e jurídicas, colocando à frente dessa perspectiva os
bancos públicos federais (BNDES, BB e CEF).
A oferta de crédito entre
junho de 2003 e junho de 2013 cresceu 564%, tendo ido a relação
crédito/PIB, no mesmo período, de 24,7% para 55,2%, ao passo que a
inadimplência caiu 5,2%.
Não por motivos
contra-reformistas, mas por aspirações socialistas de curto prazo e
insustentáveis, os esquerdistas também criticam Dilma. Querem mais e
mais (e quem não quer?) e desprezam o que é feito. Por exemplo, na
educação universitária, são contra o REUNI, que expandiu muito o ensino
federal superior no Brasil. Acabam fazendo coro com a oposição
institucional, com PSDB, DEM, PPS e, agora, com a coligação PSB-Rede.
Como nunca antes na história do Brasil o ótimo é tão inimigo do bom.
Mesmo em um contexto de crise internacional, em 2013, o Brasil alcançou o
terceiro lugar em crescimento econômico, em um ranking envolvendo 13
países desenvolvidos e emergentes. Cresceu 2,3%, abaixo apenas de China
(7,7%) e Coreia do Sul (2,6%).
No fundo, há uma disputa pelos
recursos orçamentários, humanos e organizacionais do Estado: eles devem
servir a quais interesses e a qual modelo econômico? Dilma é atacada,
principalmente, para que a reforma social já feita e que os
manifestantes de junho desejam aprofundar seja interrompida e algumas
minorias milionárias possam apostar nos ganhos propiciados pela
contra-reforma neoliberal.
*Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política daUniversidade Federal Fluminense (UFF)e pesquisador das relações entre Política e Economia.