O jurista Walter Maierovitch publica na Carta Capital uma análise arrasadora do que poucos hoje comentam: a parcialidade do Supremo Tribunal Federal na análise de dois processos de base fática idêntica contra personagens de partidos diferentes. De um lado a Ação penal 470, o mensalão atribuído ao PT e de outro o mensalão tucano de Eduardo Azeredo em Minas...
É de corar qualquer advogado com um mínimo de noção de justiça...
Suprema loteria
Azeredo esperou quatro anos para renunciar. É chicana processual. Mas Roberto Barroso deu um jeitinho
por: Wálter Maierovitch
Para os que já passaram dos 65 anos
e, como escreveu Machado de Assis, estão a descer a “vertente do oeste”
sob o olhar conformado do anjo Ariel, o tal jeitinho brasileiro
envergonha.
Na sessão plenária de 27 de março, o STF, nos autos da
Ação Penal 536, apelidada de ‘mensalão tucano’, declinou da sua
competência para julgar, originariamente, Eduardo Azeredo. Ele é acusado
de coautoria em crimes de peculato e lavagem de dinheiro, com desvio,
para fim eleitoral, de 3,5 milhões de reais de empresas públicas (Cemig e
Codemig).
Diante disso, o processo criminal baixará
à primeira instância da Justiça mineira e, ao contrário do sustentado
pelo ministro-relator Roberto Barroso, há risco real e efetivo de
ocorrer prescrição a levar à extinção da punibilidade de Azeredo.
Trata-se de risco efetivo
quando levada em conta a prescrição calculada pela pena em concreto, ou
seja, àquela fixada na sentença definitiva e individualizada a partir
do marco mínimo: no peculato, de 2 anos e na lavagem de 3 anos. A
Barroso foi conveniente lembrar apenas da prescrição pela pena em
abstrato, ou seja, calculada pelo máximo previsto nas leis criminais: 12
anos para o peculato e 10 para a lavagem.
Azeredo, no dia 19 de fevereiro, havia
renunciado ao cargo de deputado federal. No seu caso judiciário, o STF,
em 3 de dezembro de 2009, levara mais de 20 horas para receber a
acusação apresentada pelo procurador-geral Antonio Fernando Souza. O
placar, com Joaquim Barbosa de relator, foi de 5 votos contra 3 e a
ministra mineira Cármen Lúcia deu-se por impedida. Pela rejeição da peça
acusatória votaram, como era previsível, os ministros Dias Toffoli,
Eros Grau e Gilmar Mendes.
A instrução processual foi longa e, em 7 de fevereiro
deste 2014, o procurador-geral, em alegações finais, pediu a procedência
da ação penal e a condenação de Azeredo às penas, em concurso material,
a totalizar 22 anos de reclusão, em regime inicial fechado. A renúncia
foi comunicada ao STF à véspera do início do prazo para a defesa técnica
apresentar a sua manifestação final.
Para certos numes
nacionais, a Constituição estabelece foro especial por prerrogativa de
função e não foro privilegiado. Muitos doutrinadores aplaudem essa
modalidade de foro em face da majestade do cargo, ou melhor, da função e
não da pessoa. Outros, e de maneira acertada, consideram odioso esse
critério de fixação de competência e isso por violar, flagrantemente, a
garantia constitucional da igualdade. Daí a nossa Constituição proibir
foros privilegiados.
Com foro privilegiado reconhecido, nos
últimos 50 anos, o STF, exceção ao ex-deputado federal Natan Donadon,
não condenou nenhum político a regime fechado. A propósito, o primeiro
político condenado pelo STF foi José Tático (PTB de Goiás), no fim de
novembro de 2011, por se apropriar de 750 mil reais da Previdência
Social. Tático, no entanto, restou contemplado com o regime semiaberto.
Como se fosse fato consumado, ninguém se abalou, em 1969,
quando a Convenção Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu a
garantia do duplo grau de jurisdição a todos os condenados. Em outras
palavras, aboliu-se o foro por prerrogativa de função do STF e, por
evidente a sua vis atrativa aos mortais corréus. Apesar disso, o
STF editou, em setembro de 2003, a Súmula 704 a garantir, por conexão
probatória ou continência, que a sua jurisdição alcance corréus sem o
foro privilegiado.
No “mensalão petista”, o STF entendeu em submeter à sua
jurisdição, com base na Súmula 704, os corréus não parlamentares. Assim,
passou por cima da Convenção Interamericana, um tratado internacional
aprovado pelo Brasil. O mesmo entendimento não teve o STF referentemente
aos corréus não parlamentares do “mensalão tucano”, todos enviados, faz
tempo, à primeira instância.
Para o então parlamentar renunciante Ronaldo Cunha Lima, o
STF declinou da competência. O mesmo não fez em face da renúncia do
então deputado Natan Donadon e, para tanto, alegou abuso e isso por ter
tido por objetivo evitar o julgamento pelo STF.
Ao sabor do jeitinho brasileiro, o
ministro Roberto Barroso entendeu ter Azeredo, apesar de renunciar para
evitar ser julgado pelo STF, agido antes das alegações finais defensivas
e à preparação do voto pelo relator e pelo revisor. Só não disse haver
Azeredo aguardado mais de quatro anos (a denúncia foi recebida em
dezembro de 2009) para renunciar, e isso tem o nome de chicana
processual, que é abusiva.
A propósito, Donadon e Azeredo
renunciaram pelo mesmo motivo de fugirem à jurisdição do STF. Ambos em
momentos procedimentais muito próximos da reta final. Bingo, no
entanto, só para Azeredo.