Esta matéria foi publicada hoje no "Observatório da Imprensa":
STF NA TV
Publicidade, vedetismo e deslumbramento
Por Dalmo de Abreu Dallari
A experiência que já se tem da transmissão ao vivo – ou, segundo a
gíria dos meios de comunicação, da transmissão em tempo real – das
sessões do Supremo Tribunal Federal deixa mais do que evidente que essa
prática deve ser imediatamente eliminada, em benefício da prestação
jurisdicional equilibrada, racional, sóbria, inspirada nos princípios
jurídicos fundamentais e na busca da Justiça, sem a interferência
nefasta de atrativos e desvios emocionais, ou de pressões de qualquer
espécie, fatores que prejudicam ou anulam a independência, a serenidade e
a imparcialidade do julgador.
A par disso, a suspensão da transmissão direta das sessões contribuirá
para a preservação da autoridade do Supremo Tribunal Federal, livrando-o
da louvação primária aos rompantes e destemperos emocionais e verbais
de alguns ministros. A recreação proporcionada pela transmissão ao vivo
das sessões do Supremo Tribunal equipara o acompanhamento das ações da
Corte Suprema às manifestações de entusiasmo ou desagrado
características das reações do grande público às exibições dos programas
de televisão que buscam o envolvimento emocional dos telespectadores e a
captação de consumidores para determinados produtos, recorrendo ao
pitoresco ou à promoção de competições entre pessoas ou segmentos
sociais sem maior preparo intelectual para a avaliação racional e
crítica de disputas de qualquer natureza.
Como tem sido observado por estudiosos e conhecedores do Judiciário, o
Brasil é o único país do mundo em que as sessões do Tribunal Superior
são transmitidas ao vivo, proporcionando recreação aos que as assistem,
pessoas que, na quase totalidade, não têm conhecimentos jurídicos e são
incapazes de compreender e avaliar os argumentos dos julgadores e o real
sentido das divergências que muitas vezes se manifestam durante o
julgamento e que, em inúmeros casos, já descambaram para ofensas
grosseiras e trocas de acusações absolutamente desrespeitosas entre os
ministros do Supremo Tribunal Federal.
Diálogo áspero
A prática dessas transmissões teve início com a aprovação pelo
Congresso Nacional da Lei nº 10.461, de 17 de maio de 2002, que
introduziu um dispositivo na Lei n° 8.977, de 6 de janeiro de 1995, que
dispõe sobre o serviço da TV a cabo. Foi, então, acrescentada uma
inovação, que passou a ser o inciso “h” do artigo 23, estabelecendo que
haverá “um canal reservado ao Supremo Tribunal Federal, para divulgação
dos atos do Poder Judiciário e dos Serviços essenciais à Justiça”.
A utilização desse veículo de comunicação ganhou enorme ênfase, com
absoluto desvirtuamento da idéia de serviço, quando assumiu a
presidência do Supremo Tribunal o ministro Gilmar Mendes, que dirigiu a
Suprema Corte de 2008 a 2010. Basta assinalar que no orçamento do STF
para o ano de 2010 foram destinados 59 milhões de reais a “Comunicações
Sociais”, quantia essa equivalente a 11% do orçamento total da Suprema
Corte. Essa dotação superou em quase cinco vezes o orçamento anual do
Tribunal Superior Eleitoral – e isso num ano eleitoral no Brasil, em que
houve eleições de âmbito nacional.
Tem início, então, uma fase verdadeiramente degradante para a imagem da
mais alta Corte do país, com o mais deslavado exibicionismo de alguns
ministros e a transmissão, ao vivo de trocas de ofensas e de acusações
grosseiras entre membros do Supremo Tribunal. Assim, em abril de 2010
ocorreu um diálogo extremamente áspero entre os ministros Gilmar Mendes e
Joaquim Barbosa. No debate transmitido para todo o Brasil, este acusou
Gilmar Mendes de ser um deslumbrado, um praticante do vedetismo,
dizendo, textualmente: “Vossa Excelência está diariamente na mídia,
dirigindo palavras ofensivas aos demais ministros e destruindo a
credibilidade do Judiciário brasileiro”.
Dois anos depois, coube ao ministro Joaquim Barbosa presidir o Supremo
Tribunal Federal e o que se tem observado, desde então, é que o
vedetismo e o deslumbramento pelo prestígio entre os telespectadores,
descaminhos que antes ele condenara, continuaram a marcar o desempenho
do ocupante da direção da Suprema Corte e a ser a tônica na utilização
do canal de televisão reservado ao Supremo Tribunal.
Linguagem elevada
Por tudo isso é merecedor do mais veemente apoio o Projeto de Lei nº
7.004, de 2013, proposto pelo deputado Vicente Cândido (PT-SP). De
acordo com esse projeto, o referido inciso “h” do artigo 23 da Lei nº
8.977 passará a ter a seguinte redação: “Um canal reservado ao Supremo
Tribunal Federal para a divulgação dos atos do Poder Judiciário e dos
seus trabalhos, sem transmissão ao vivo e sem edição de imagens sonoras
das suas sessões e dos demais Tribunais Superiores”.
O projeto poderia ser mais veemente, dispondo textualmente: “Vedada a
transmissão ao vivo”, mas esse é um pormenor. O que é de fundamental
importância é a eliminação das degradantes e desmoralizadoras
transmissões ao vivo das sessões do Supremo Tribunal Federal,
restaurando-se na mais alta Corte brasileira uma atitude de sobriedade,
de respeito recíproco entre seus integrantes, sem os desníveis
estimulados pelo exibicionismo. E isso não trará o mínimo prejuízo para a
prática da publicidade inerente ao Estado Democrático de Direito, que
deverá ser ética, em linguagem elevada e respeitosa, transmitindo o
essencial das decisões e dos argumentos dos ministros, inclusive das
divergências, a fim de que prevaleçam os interesses da Justiça.
***Dalmo de Abreu Dallari é jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo