DILMA ROUSSEFF | PRESIDENTA DO BRASIL
“Os protestos mostram que sair da miséria é o início de mais reivindicações”
A presidenta conversa com o EL PAÍS no Palácio do Planalto
Ela afirma que as manifestações de junho não são um ponto fora da curva, mas a própria curva
“O Governo dos EUA estava bastante constrangido com a espionagem”
“Se eu não for exigente não entrego em quatro anos o que devo entregar”
Quase no final desta entrevista, que não foi uma entrevista, e sim
uma conversa cuja duração, sem saber muito bem como, acabou se
estendendo além do previsto, a presidenta Dilma Rousseff me repetiu,
entre risos, uma ideia que já havia esboçado na metade da conversa, e
que, segundo ela, explica extraordinariamente bem alguns paradoxos
brasileiros.
– Nunca se esqueça: aqui você tem de ter cuidado, porque é preso por ter um cachorro, e por não tê-lo.
Um desses paradoxos, talvez o mais chamativo, ocorreu há alguns
meses. O Brasil viveu uma catarse nacional em junho passado. Centenas de
milhares de brasileiros ocuparam as ruas das principais cidades do
país, nos maiores protestos em uma geração, cansados, segundo
concordaram numerosos analistas independentes, das deficiências crônicas
nos serviços públicos, educação e saúde e da percepção de uma classe
política assolada pela corrupção e a negligência. Já que milhões de
pessoas abandonaram a pobreza no Brasil nos últimos anos, com as
políticas, primeiro, de Luiz Inácio Lula da Silva e depois da própria
Rousseff, as motivações dos manifestantes não pareciam óbvias de
imediato. O movimento surpreendeu tanto o Governo quanto o resto do mundo,
embora protestos aparentemente semelhantes tivessem estourado também em
outros países. Os investidores internacionais ficaram de orelha em pé,
sempre temerosos pela estabilidade institucional. Certa imprensa
internacional começou a duvidar do Brasil como um país de sucesso.
Vários dos governantes questionados em outros países por seus cidadãos,
especialmente pelos mais jovens, se mostravam encurralados e
desorientados. Rousseff foi a única a perceber de imediato a importância
do que estava acontecendo, a única a tomar a iniciativa política de
escutar a rua, e a única a superar em poucos meses o desabamento de
popularidade que aconteceu durante aqueles dias extraordinários. Então
começo a conversa lhe perguntando em qual momento preciso ela se
conscientizou da gravidade da situação e da necessidade de reagir
politicamente.
– No início das manifestações, quando elas surgiram, nós percebemos que tinha um lado importante, que era um descontentamento com a qualidade dos serviços públicos. Ninguém estava nessas manifestações pedindo uma volta atrás, um retrocesso. O que se pedia era que houvesse um avanço.
Estamos sentados em um sofá do amplo e luminoso gabinete da
presidenta no vanguardista Palácio do Planalto, em Brasília, na
segunda-feira de manhã, uma visita por ocasião do lançamento, hoje, da edição do EL PAÍS em português para o Brasil.
Mostro a ela no iPad os testes que a redação em São Paulo está
realizando. Mas Rousseff insiste que não iremos manter uma entrevista
formal – “Não, não, hoje não irei falar, irei primeiro dizer da
importância para o Brasil da chegada do El País pela sua qualidade
editorial, pela inserção internacional que vocês têm. Eu acho que é um
grande passo para nosso país. Você pode me fazer umas duas ou três
perguntas, mas eu não vou dar entrevista hoje” –, me promete uma
entrevista aprofundada em um futuro sem determinar e aceita manter uma
breve conversa sobre os dois ou três assuntos que mais me interessam e
pelos quais o Brasil tem ocupado espaço neste ano na imprensa
internacional: os protestos de junho, a espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos e a desaceleração econômica do país que, até então, apresentava um crescimento chinês
de 7,5% em 2010, a taxa mais robusta do último quarto de século. O ano
passado acabou com um crescimento de 0,9%, que acaba de ser revisto para
cima.
Democracia, crescimento e protestos
Mas, por enquanto, continuamos falando dos protestos de junho. Muitos
os desqualificaram como um subproduto de grupos antissistema, e outros
aproveitaram para apresentá-los como uma desautorização da presidenta,
do seu Governo e das suas políticas, embora logo tenha ficado claro que
era a imensa classe média deste país de dimensões continentais – ou
melhor, seus jovens, compreendidos e não poucas vezes alentados pelos
mais velhos – que reivindicava um novo contrato social, apesar do
fortíssimo crescimento econômico dos últimos anos, ou precisamente por
causa dele. Esta última ideia é a que Rousseff defende.
–Essas manifestações eram fruto de dois processos: um processo de
democratização e também os processos de inclusão social e de crescimento
do salário, do emprego, de crescimento das políticas sociais, que
levaram para a classe média milhões de pessoas. Essas pessoas que saíram
da miséria tinham reivindicações relacionadas à questão da saúde, da
educação, da mobilidade urbana.
– A senhora diria que se tratava da classe média basicamente...
– Que fez as manifestações? A nossa classe média não tem o mesmo
padrão de renda da classe média americana, não é? Mas da nossa classe
média, da nova classe média – porque é uma coisa interessante no Brasil:
se você somar a classe média, que hoje é majoritária no Brasil em
termos percentuais, com a classe A e B você vai ter, o quê?, uns 60% do
país. Nós focamos muito nas classes mais pobres. Mas também temos de ter
uma política para a classe média que diz respeito à qualidade dos
serviços públicos.
– O que a senhora, como governante, aprendeu com os protestos?
– Acho que a gente aprende duas coisas. Primeiro, a gente aprende que
as pessoas, sempre, quando têm democracia querem mais democracia.
Quando elas têm inclusão social elas querem mais inclusão social. Ou
seja, que na política e na ação governamental quando você obtém uma meta
você tem de ter certeza de que aquilo é só um começo. Assim como sair
da miséria é só um começo. É um começo de outras reivindicações. Então o
que os protestos mostram é isso. Segundo, que um Governo tem de escutar
a voz das ruas. Um Governo não pode ficar isolado escutando a si mesmo.
Então é intrínseco à democracia ser capaz de conviver com
manifestações. Não é um episódio fortuito, ou um ponto fora da curva – é
a curva.
Rousseff abandona por um momento o ar de seriedade extrema que
empregou desde que começou a conversa. Não sei se se prepara para
encerrar o encontro, mas com a ideia da curva sorri abertamente enquanto
se aproxima da borda da poltrona; parece se animar, e começo a abrigar
esperanças de que a conversa tenha mais duração do que a presidente
previu no começo. Enquanto isso, ela continua de forma decidida.
– É a curva! E essa é uma questão que é importante. Por quê? Porque o
Estado tem poder repressivo e coercitivo. Então se ele não souber lidar
com a manifestação ele cai em um equívoco político sério. Uma coisa é a
manifestação pacífica como foi a nossa. Houve grupos infiltrados que
eram violentos? Houve. Agora, esses grupos não podem ser razão para você
desqualificar as manifestações. Hoje há no Brasil a consciência de que
essa violência não tem nada a ver com democracia. Esse pessoal de cara
tampada que quebra patrimônio público, patrimônio privado e fere pessoas
não está exercendo a democracia, está exercendo a barbárie. Isso é uma
coisa. Agora, manifestação pacífica, eu acho que... Sabe o que que ela
faz? Ela rejuvenesce o país. Rejuvenesce. Torna o país mais capaz de
lidar com as suas características, com a sua diversidade, com as suas
diferenças... E ser capaz de lidar com as diferenças é intrínseco,
querendo as pessoas ou não é intrínseco à democracia. Então olhar as
manifestações como algo que você tem de escutar, e não reprimir, é
fundamental.
O choque da violência policial
Fundamental ou não, o fato é que a polícia atuou com certa violência
não justificada durante todo o transcurso das manifestações, que as
imagens dos policiais golpeando grupos de jovens surpreenderam e
irritaram amplas camadas da população e contribuíram para reforçar o
movimento de protesto. Não pelos fatos em si, seguramente, sobretudo num
país onde a polícia é empregada a fundo e nem sempre de forma adequada
nas favelas e outras zonas desfavorecidas, mas porque pela primeira vez
muitos cidadãos viam como as vítimas desta vez eram jovens das classes
médias urbanas. Isso pressupôs um choque não menos importante para
muitos, digo eu a Rousseff.
– É, houve de fato momentos de exagero na repressão policial,
principalmente no início. Houve também violência de parte das
manifestações, mas como eu lhe disse eu acredito que a partir de um
determinado momento todos – pelo menos não vi nenhum governador depois
deixar de escutar, tentar evitar o confronto. Houve momentos errados no
início, mas depois todo mundo aprendeu.
Quem mais aprendeu foi, sem dúvida, a própria presidenta, que se
recuperou de forma extraordinária na apreciação popular graças à sua
reação diante dos acontecimentos de junho, e a quem a última pesquisa
publicada confere, neste momento, o triunfo na próxima eleição
presidencial já no primeiro turno. Uma capacidade de reação que a esta
altura do seu mandato já não deveria surpreender ninguém, se é que
alguma vez alguém duvidou, no começo, das capacidades políticas de
Rousseff, que durante anos atuou de forma eficaz como funcionária
pública, sem demonstrar desejo algum, ao contrário de tantos outros, de
se lançar numa corrida política pela faixa presidencial.
A oportunidade das reformas
No rescaldo dos protestos, a presidenta propôs ao país cinco grandes reformas
com a intenção de utilizar o clima político gerado no país para levar
adiante sua ambiciosa agenda em temas sociais, de saúde e infraestrutura
de transportes, bem como mudanças políticas destinadas a frear a
corrupção endêmica e a favorecer a transparência. Num sistema político
como o brasileiro, com uma multiplicidade de pequenos partidos (só a
coalizão que sustenta a presidenta, conhecida como “a base”, conta com
dez agremiações), qualquer tentativa de reforma tem assegurada, de
saída, a oposição de muitos, se não de quase todos. Mas Rousseff não
iria desperdiçar a oportunidade. Pode-se resolver com essas cinco
grandes reformas o mal estar dos cidadãos tal qual se expressou em
junho?, lhe pergunto.
– Eu acho que sim. Contribuiu para que houvesse uma saída
institucional dessas manifestações. No caso da saúde, nós fizemos o
programa Mais Médicos. Tudo que nós prometemos nos cinco pactos nós
entregamos. Prometemos uma melhoria considerável na questão da saúde
pública, e não só investimentos em postos de saúde, unidades de
pronto-atendimento e hospitais, mas na questão dos médicos. No Brasil,
você tinha uma quantidade imensa de regiões sem atendimento médico: as
periferias das grandes regiões metropolitanas, as cidades do interior, e
nas mais longínquas então era pior, as de fronteira, e Norte e
Nordeste. Além disso, certas populações: população indígena e população
quilombola. Então, nessa questão dos serviços públicos nós também
fizemos o Pacto pela Mobilidade Social, que resultou em um investimento
de 143 bilhões de reais em transporte coletivo urbano: metrô, VLT, BRT e
corredor exclusivo de ônibus. É a primeira vez que um Governo federal
faz esse volume de investimento. É bom lembrar que no Brasil não se
considerava adequado o investimento em metrô na década de 90. Então tem
um passivo muito grande. Por que não se considerava? Porque se dizia o
seguinte: o país não tem renda suficiente para investir em metrô. [Mais
o] pacto da educação. E o pacto pela reforma política que nós enviamos
para o Congresso e que eu acho que é fundamental, que implica uma
reforma eleitoral que trate de tudo – de financiamento de campanha, mas
também, em decorrência disso, uma melhoria sistemática na questão ética
que é a da corrupção. Agora, a condição para esses pactos é a
estabilidade fiscal.
– E isso está garantido?
– Na semana passada, a base de apoio político do Governo no
Congresso, que é majoritária, propôs junto com o Governo assumir um
pacto pela responsabilidade fiscal de forma que neste momento não vai
haver aumento de despesa nem redução de receita. Assinaram um documento
com todos eles.
Disciplina e sócios parlamentares
O compromisso dos sócios parlamentares da presidenta de não aumentar o
gasto é certamente importante, o que não evita, no entanto, que aflorem
as críticas sobre a idoneidade e equilíbrio entre as diferentes
rubricas do orçamento. O Brasil arrecada 36% do PIB em impostos, mas os
serviços que oferece a seus cidadãos não são como os europeus, pelo
menos na infraestrutura. Na Previdência, por outro lado, gasta em
proporção igual a alguns países da Europa meridional, nos quais a
proporção de idosos é três vezes maior. Em determinados casos, é
possível obter aposentadorias elevadas em idades relativamente precoces,
ao passo que todos os agentes econômicos concordam sobre a necessidade
de investir mais em infraestrutura.
– Não deve ser fácil assegurar a disciplina, com uma formação de Governo tão ampla e tão díspar.
– Minha base está muito calma. Acho que nunca uma base foi tão ativa e proativa.
– Como conseguiu?
– Porque ficamos roucos de ouvir. E também de discutir. Hoje eu tenho
uma reunião às seis da tarde, pode durar até as dez, quanto tempo for
nós ficamos discutindo. Nunca um Governo conseguiu dos parlamentares
nesta época do ano, que é quando acontecem os maiores gastos, uma
assinatura coletiva [do compromisso de não gastar].
– E a respeito das críticas de que, com 36% do PIB de carga fiscal, a
arrecadação não basta para as necessidades mais imperiosas. Para onde
vai o dinheiro, presidenta?
– Não é o que acontece agora. Porque agora nós somos criticados por termos reduzidos os impostos. Não sei se você sabe disso.
– Sim, eu sei.
– Então, eles têm de resolver se nós somos presos por termos cachorro
ou por não ter cachorro. Pelos dois não dá [a presidenta ri
abertamente]. Tem de resolver se vão nos criticar por reduzir os
impostos ou por não reduzir os impostos. Aqui no Brasil é complicado.
– Isso pelo lado dos impostos. E do lado dos gastos, há algo que deva cortar? Pensões, funcionalismo público...
– Nós não estamos nessa fase, não temos uma dívida como a da Espanha,
temos 35% de dívida líquida [ou 58,8%, segundo a metodologia
internacionalmente aceita, que é a dívida bruta]. Nós temos superávit
primário. A discussão no Brasil é se o superávit primário será de 1,8%,
1,9% ou 2%. É essa discussão. Não é se nós aumentamos a dívida. É
diferente aqui. E eu quero ter 5,2% de desemprego, e não quero
aumentá-lo. Porque dizem: ‘Não, vocês precisam aumentar o desemprego’.
Que aumentem eles! Nós continuaremos impedindo que o desemprego se
amplie. Por isso desoneramos a folha de pagamento [as contribuições do
INSS deixaram de ser descontadas das folhas para serem retidas do
faturamento bruto das empresas]. Não reduzimos os direitos sociais.
Estamos com a renda crescendo. Aqui é assim.
– Embora agora tenham passado por alguns anos de baixo crescimento, a senhora não vê riscos?
– Esta semana resolveram reavaliar o PIB. E o PIB do ano passado, que
era 0,9%, passou para 1,5%. Nós sabíamos que não era 0,9%, que estava
subestimado o PIB. Isso acontece com outros países também. Os Estados
Unidos sempre revisam seu PIB. Agora nós neste ano vamos crescer bem
mais do que 1,5% – resta saber quanto acima.
Ninguém discute que o Brasil é uma história de sucesso e que se trata
de uma história de sucesso que ainda tem um longo caminho, o que não
impede que também sejam ouvidas vozes de alerta, ou de queixa, ou de
pedidos de reformas profundas no complexo sistema burocrático do país,
assuntos todos que no conjunto podem reduzir a atratividade para a
chegada de capital externo, imprescindível para enfrentar as enormes
obras de infraestrutura necessárias para assegurar no futuro próximo
taxas elevadas de crescimento e riqueza.
Um relatório do Banco Central calcula que uma empresa média precisa
de cerca de 2.600 horas por ano para calcular o pagamento dos seus
impostos, cinco vezes mais do que a média na América Latina e dez vezes
mais do que a média mundial. Por outro lado, basta passar alguns dias no
país para comprovar o elevado nível de preços nas grandes cidades, onde
o aluguel de escritórios nos melhores bairros não tem rival em todo o
continente, incluindo os Estados Unidos. Segundo a revista The Economist,
o Brasil é o segundo mercado, depois do Japão, onde é mais difícil
encontrar mão de obra qualificada, por causa da enorme demanda, e onde
nos mais altos escalões das empresas as multinacionais às vezes acabam
pagando mais aos executivos brasileiros do que aos seus chefes em
Londres e Nova York. Antes, falando dos protestos de junho passado, a
presidenta me garantiu que não considera que o real esteja
excessivamente valorizado.
Queixas, fundadas ou não
Agora lhe pergunto sobre os temores a respeito da segurança jurídica,
sobre a excessiva burocracia e sobre as condições draconianas de
algumas licitações que irritam determinadas empresas estrangeiras, que
por outro lado veem a imensa oportunidade de negócios representada pelas
dezenas de bilhões de dólares que o Brasil irá licitar em obras
públicas para os próximos anos, a fim de assegurar seu crescimento
econômico e progresso social.
– Pois é, mas as condições se mostraram bastante atrativas. Veja você, não vou falar das [licitações] passadas – porque já tínhamos licitado quatro aeroportos.
Eu vou falar só das mais recentes. Nós licitamos uma rodovia, o maior
campo de petróleo que o Brasil alguma vez teve, o de Libra, com uma
participação muito expressiva de empresas como a Shell, a Total e as
duas maiores chinesas, a CNOOC e a CNPC. Nós licitamos logo em seguida
dois aeroportos [no Rio e em Belo Horizonte]. Todas as empresas que
participaram eram empresas de primeira linha na gestão aeroportuária. Da
Espanha a Ferrovial, a Zurich, e a que ganhou foi uma de Cingapura, a
Changi, com a Odebrecht, e a CCR com os aeroportos de Zurique e Munique.
E ainda tinha a Aéroports de Paris, e a Schiphol, que é holandesa.
Enfim, várias das maiores operadoras, a Fraport... E nós consideramos
que foi muito bem sucedido, o resultado é muito bom, para um aeroporto
só foi 19 bilhões [de reais], você veja que foi um ágio de 243%, 245%,
então as condições de rentabilidade não eram tão ruins assim, não é?
Como é que você tem um ágio de 243%? O lance mínimo estava em 4 bilhões e
ganhou quem deu 19. E entre o 4 e o 19 teve 14, teve 16, teve 13...
Então não é bem assim a história, né?
– Sim, está bem, sim.
– Esta semana [amanhã] vamos ter mais uma rodovia e campos de gás.
Nos campos de gás pagaram a garantia para participar, se não me engano,
12 empresas, e o das rodovias ainda não fechou, mas há pouco tempo tinha
sete grandes grupos interessados. E nós acreditamos que ainda no mês de
dezembro haverá vários leilões. E nós vamos sair deste ano com um
balanço muito positivo de licitações. Porque eu não conheço outro país
que tenha isso, não. Gostaria de saber onde que se conseguiram tantas
licitações. E isso que eu não estou falando nas licitações de linhas
transmissão [elétrica] que ocorreram na semana retrasada, nem das
licitações de geração de energia, que sempre ocorrem nesta época do ano.
– Como é em geral sua relação com os empresários?
– Eu considero que é muito boa, porque com todos esses que participaram eu falei com a grande maioria.
– Digo com os brasileiros.
– Mas os brasileiros todos estão nisso!
– Pode ser que eles, apesar de tudo, se dessem melhor com o
presidente Lula do que com a presidente Rousseff? A senhora é mais
exigente?
– Não creio que seja isso. Não creio. Acho que é um pouco de lenda.
Os EUA e suas espionagens
Em 1º. de setembro passado, um canal de televisão revelou, baseando-se em documentos do ex-analista da NSA Edward Snowden,
que os Estados Unidos tinham espionado o telefone celular particular da
presidenta Rousseff. Dois meses antes, em julho, o jornal O Globo
já havia detalhado a magnitude da espionagem dos norte-americanos no
Brasil. A reação da presidenta foi muito contundente, deixou claro seu
mal-estar em público, exigiu explicações e desculpas de Washington e
cancelou uma visita ao poderoso vizinho do norte. Passado um tempo, e
acalmadas as águas, pergunto a Rousseff se a espionagem afetará em médio
prazo suas relações com os EUA.
– Essa é hoje uma questão global. É visível hoje que o grau de
espionagem feito pelos Estados Unidos nos países foi bastante variado e
diversificado. Nós não consideramos que haja por conta dessa espionagem
um problema na relação econômica, comercial ou de investimento. Nós não
vemos assim.
Então a presidenta endurece o tom.
– Agora, nós achamos que é importante cada vez mais a conscientização
de que isso não é possível. Uma relação como a do Brasil e dos Estados
Unidos, que os dois países querem que seja estratégica, não pode ter
como característica uma violação nem dos direitos civis da minha
população nem da minha soberania. Então o que nós dissemos ao Governo
americano foi justamente isso: que não cabia, nesse momento, uma visita.
Primeiro porque eles não sabiam o que o Snowden tem de dados – muito
menos nós sabemos, porque nós não temos a menor condição de termos essa
informação. Como eles não tinham...
– A senhora soube só quando foi publicado?
– Nós não sabíamos.
– Não houve um relatório dos seus serviços secretos advertindo-a...
– Não, não. Eu acho que também no caso da Angela Merkel deve ter sido
a mesma coisa, no caso da França deve ter sido a mesma coisa, não sei o
que aconteceu na Espanha. Então o que aconteceu? Aconteceu que em
qualquer momento, sobre qualquer coisa, pode aparecer outra denúncia. E o
que nós pedimos ao Governo americano? Pedimos, primeiro, desculpas
formais, e segundo, uma declaração de que não aconteceria mais. Eles
estavam, vou te dizer, bastante constrangidos, lamentaram muito que
tenha havido isso, não houve nenhuma atitude, eu diria assim, que
desrespeitasse qualquer norma diplomática, pelo contrário, houve uma
manifestação do Governo de que lamentava, mas não tinham condições de
resolver o problema só com o Brasil, uma vez que afetava outros amigos.
– E como se sente a senhora pessoalmente ao saber que seu telefone pessoal havia sido espionado?
– Eu, como pessoa, não tenho o que os americanos chamam de bad feelings,
mas eu como presidente tenho de ficar indignada. Porque não se trata de
uma invasão à minha privacidade; aí se trata da invasão da privacidade
da presidenta da República. Aí é uma questão de honrar o meu país eu
ficar indignada, porque é uma violação de direitos humanos pessoais
meus, mas sobretudo da soberania do meu país. Aí é algo que não se
admite. Não se pode admitir.
Dura e exigente, mas com matizes
Os 25 minutos combinados já terminaram. Mesmo assim, convenço a
presidenta, cujos gestos indicam que a conversa chegou ao fim, a
esclarecer uma última questão. Rousseff tem fama de exigente com seus
subordinados, de que as reuniões com os funcionários são de uma
extraordinária dureza, de que um ou outro já saiu de determinada sessão
de trabalho com o rabo entre as pernas e inclusive com lágrimas nos
olhos. Numa entrevista anos atrás, quando ainda era ministra, lhe
perguntaram se era verdade que suas broncas nos outros ministros eram
lendárias, inclusive para o então presidente Lula.
– Não, para o presidente, não – respondeu ela.
Essa capacidade de se impor com inflexibilidade quando considera que o
trabalho não foi feito corretamente ou quando os resultados não são os
que ela espera se transformou, segundo alguns conhecedores do Governo,
em uma das chaves do sucesso da sua gestão, mas contrasta vivamente com a
imagem relaxada, sorridente, amável e próxima que Rousseff ofereceu ao
longo da conversa. Naturalmente, não é a mesma coisa sentar-se com um
jornalista e presidir uma reunião de trabalho com funcionários. Então
lhe pergunto diretamente o que há de verdade na fama que a precede de
ser implacável com seus funcionários.
– Eu sou muito exigente, sim, porque eu...
– Porque é consigo mesma também?
– Não, não, não é por isso. Eu estou aqui não para ficar eternamente.
Estou aqui para fazer um trabalho e ir embora. Vivo numa democracia.
Portanto, se não for exigente não entrego em quatro anos o que eu devo
entregar. Tem uma razão política. E acho que isso tem a ver com o fato
de eu ser mulher. Antes, era que eu era muito dura, não que eu era muito
exigente. E eu disse uma vez que eu era uma mulher dura cercada de
homens meigos. Todos os homens são meigos.
– E então?
– Exigentes e duras são as mulheres. Meigos e flexíveis são os homens.
– Mas é verdade ou não que em alguma reunião com funcionários algum saiu chorando?
– Essa é uma história com o [Sérgio] Gabrielli...
– É uma lenda, então?
– Diziam que o Gabrielli, que era presidente da Petrobrás, foi chorar
no banheiro, e depois disseram que ele era um senhor soberbo. Na mesma
semana disseram que ele foi chorar no banheiro, e também que ele era
muito soberbo. Nós começamos a chamá-lo de Soberbo Chorão [ri
abertamente]. Você conhece o Gabrielli?
– Não.
– Pois foi com o Gabrielli, você pode olhar. No começo da semana ele
foi chorar no banheiro, mas no fim da semana era uma pessoa soberba,
então o chamávamos de... Soberbo Chorão! Com a estatura dele! Eu
perguntava: então você foi chorar no banheiro? O Gabrielli ficava com
muita raiva.
E volta a rir. A história, portanto, é uma lenda. Mas, apesar dos
esforços da presidenta para aparar com ironias as arestas do seu
caráter, isso não muda minha percepção de que, apesar do invólucro,
Dilma Rousseff comanda o Governo do seu país com uma determinação, um
conhecimento do detalhe e uma energia que explicam sem dificuldade seu
triunfo nas urnas, primeiro, e sua constante popularidade ao longo do
tempo, numa era em que as lideranças se esgarçam com facilidade e que os
governantes têm cada vez mais dificuldades para renovar seus mandatos e
ainda exercer seu poder. Nada disso, porém, parece estar acontecendo no
Brasil neste momento.