A análise de Paulo Moreira Leite em seu Blog na IstoÉ mostra a insanidade que cerca a obra da usina de Belo Monte. E faz um alerta...
Quem perde na guerra de Belo Monte
Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em
Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente
em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época.
Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".
O debate sobre Belo Monte parece uma discussão sobre meio ambiente. Não é. A questão envolve nosso desenvolvimento e o bem-estar da população, em especial a mais humilde
Faça um teste de sinceridade: antes de
seguir a leitura deste texto, desligue o computador por um minuto e, no
escuro, tente adivinhar qual o tema em discussão.
Quando você ligar de novo, irá descobrir que o assunto é a construção da Usina de Belo Monte.
Há dois dias, a Justiça deu nova liminar que interrompe a
construção da usina, planejada para ser a maior hidrelétrica em
atividade no território nacional depois de Itaipu. O desembargador
federal Antônio de Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 1º
Região (TRF-1) acolheu denúncia do Ministério Público Federal, que
afirma que não estão sendo cumpridas condições estabelecidas pelo
Ibama.
A decisão liminar de Souza Prudente determina a anulação da Licença de Instalação da usina.
Não é o primeiro nem o último capítulo de uma guerra.
Já existe uma determinação de suspensão de uma liminar semelhante,
assinada pelo presidente do Tribunal. A licença de instalação da usina
está em vigor, de qualquer maneira.
Esta liminar representa a 27ª interrupção nos trabalhos desde que
as obras tiveram início, em 2011. Sendo generoso, temos uma interrupção a
cada mês e meio, em média. É um plano de guerra através dos tribunais,
vamos combinar.
Em matéria de judicialização, essa forma de interferir nas decisões
do Estado sem levar em conta a soberania popular, que se manifesta nas
urnas, pelo voto que escolhe os representantes da nação, deve ser um
recorde mundial.
O mini apagão sugerido no teste se justifica pelo seguinte. Para
acompanhar o crescimento da economia, estima-se que o país precise
ampliar em 5,2% ao ano sua oferta de energia na próxima década. Este
cálculo é oficial. É assumido pelo ministério das Minas e Energia e pela
Norte Energia, que constrói Belo Monte, fontes responsáveis pela
maioria das informações deste texto.
Você tem todo o direito de duvidar dos números, mas é bom admitir
que dificilmente irá encontrar informações muito diferentes. A ordem de
grandeza, de qualquer modo, não se altera. É possível mudar a
interpretação dos dados, naturalmente.
Aí não estaremos discutindo Ciência, mas política, esse saudável
exercício civilizatório. O debate sobre Belo Monte parece uma discussão
sobre meio ambiente. Não é. A questão envolve nosso desenvolvimento e o
bem-estar da população, em especial a mais humilde.
Desde que se descobriu que um cavalo poderia puxar uma carroça se
sabe que não há desenvolvimento sem energia. E desde que a questão
ambiental tornou-se um valor das sociedades contemporâneas, é um fator
que deve ser levado em consideração.
Em Belo Monte estamos falando de um investimento de R$ 27 bilhões,
que emprega 24.000 trabalhadores e envolve umas das formas mais limpas
de geração de energia que se conhece.
Estima-se que a energia de Belo Monte irá atender a 60 milhões de
pessoas – quase um terço da população brasileira hoje. A menos que
pretenda prolongar nosso apagão de um minuto indefinidamente, seria
preciso experimentar alternativas mais caras e mais poluentes para não
deixar essa fatia imensa de brasileiros na treva.
Por exemplo: para substituir a potencia de Belo Monte seria preciso
construir 19 usinas termoelétricas, que iriam gerar uma poluição de 19
milhões de toneladas de gás carbônico por ano, valor superior às
emissões totais de todo setor elétrico brasileiro em 2007. Outra
possibilidade, sem dúvida menos poluente, seria energia solar. O custo
seria 6 vezes maior.
Neste exercício interativo, é só multiplicar sua conta de luz por
seis para se ter uma ideia do que estamos falando. Imagine esse preço na
conta das famílias mais pobres.
É a regressão forçada à vela e à lamparina, certo? Lembra daquele
economista que quer impedir a poluição atmosférica elevando o preço da
carne e do leite para reduzir nossos rebanhos? É o mesmo raciocínio.
Não custa relembrar algumas verdades conhecidas. Elaborado e
reelaborado ao longo de três décadas, o projeto de Belo Monte é produto
de uma sucessão de negociações. As medidas compensatórias, destinadas a
beneficiar população do lugar, envolvem gastos de R$ 3,7 bilhões de
gastos nos onze municípios atingidos. Não vou listar investimentos e
melhorias em curso – algumas essenciais -- porque a ideia não é
embelezar as coisas. Basta dizer que só por causa de Belo Monte a cidade
de Altamira, com mais de 100 000 habitantes, ocupando uma área
equivalente ao Ceará e maior do que o Acre, por exemplo, terá seu
primeiro sistema de água e esgoto.
Colocada no centro de uma mobilização internacional que há décadas
procura colocar a Amazônia como uma reserva ecológica da humanidade –
sob zelo dos Estados Unidos, naturalmente -- à margem da soberania do
território brasileiro, é compreensível que a população local procure
tirar proveito de todos holofotes, nacionais e internacionais, para
arrancar cada dólar e cada real a mais para si, para suas famílias e
seus descendentes.
Não se pode, contudo, perder de vista um ponto essencial. Da mesma
forma que a população norte-americana tem a palavra final sobre o Alaska
e a população de todo país define o que fará com seus tesouros
naturais, o destino sobre a Amazônia é uma discussão entre brasileiros.
E, neste aspecto, é fácil reconhecer que o projeto de Belo Monte é uma
proposta bem encaminhada. Ao longo de décadas de debate, várias mudanças
foram realizadas, implicando em recuos e concessões dos chamados
“desenvolvimentistas”. Nem todo mundo já percebeu, mas os verdadeiros
sectários, insensíveis, em grande medida reacionários, estão entre seus
adversários.
Em relação ao projeto original, elaborado pelos padrões de uma
época em que a questão ambiental estava fora da agenda, a usina ocupará
um terço da área inicial. A tecnologia de geração de energia não se
baseia em grandes reservatórios, como ocorre no mundo inteiro, mas no
método fio d’água, que produz eletricidade de acordo com a velocidade do
rio. Em relação ao que poderia gerar, Belo Monte terá uma produção
considerada modesta, equivalente a 42% de seu potencial, contra uma
média nacional superior a 50%. É o preço que se considerou conveniente
pagar pelo respeito a cultura e hábitos da população da região.
E é um preço tão alto que vários engenheiros da área hoje
questionam se vale a pena construir uma usina com tão alto custo para
benefícios relativamente baixos – ou se vale a pena abrir uma discussão
política que até agora ficou fechada, em gabinetes que favorecem a ação
de ONGs e lobistas ecológicos, para tentar chegar a parâmetros mais
compensadores.
Em termos sociais, a obra irá provocar o deslocamento de 20 000
pessoas. É um numero respeitável, mesmo quando se considera que equivale
a 5% da população da área, de 400 000 pessoas.
Ao contrário do que se costuma divulgar, em momentos de súbito
interesse pela sorte dos primeiros brasileiros, nenhuma das 12 áreas
indígenas será alagada. Por exigência das negociações, será construído
um canal de 20 km para que suas áreas não sejam atingidas.
Nesta situação, ocorre uma charada conhecida dos confrontos
políticos, tão bem definida na fábula do Cordeiro e o Lobo. O detalhe é
que, desta vez, muitas pessoas ainda não se deram conta de que o Lobo
veste pele de cordeiro.
O que acontece com Belo Monte, então? Desligue a luz por um minuto e tente imaginar.