Páginas

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Dirceu, Genoino e o julgamento...

Sem lamentos nem desculpas, o que se quer é Justiça



 Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa". 

A situação de José Dirceu encontra-se numa fronteira insegura para aqueles que apostam em seu linchamento


A cada dia que passa, cresce a convicção de que os embargos infringentes no julgamento do mensalão podem ser pura formalidade. 
O risco é que venham a ser apresentados e rejeitados em bloco, embora o debate real esteja longe de terminado. 
 
Será lamentável, na medida em que há pontos essenciais do julgamento que merecem uma segunda avaliação. Este direito foi assegurado aos mensaleiros-PSDB MG. Dificilmente será negado aos colegas do DEM-DF. 
 
Por que recusar a turma do PT, na forma, muito mais limitada, dos embargos?
 
Os recursos dos réus do mensalão-PT  estão sendo julgados, em pacotes, pelo mesmo tribunal, pelo mesmo presidente que encerrou o julgamento, que também é o mesmo  relator. 
 
Enquanto isso, quem for condenado em Minas – quando e se isso acontecer – irá bater às portas da segunda instância, em Brasília, para buscar seus direitos. Terá outros olhos e outros ouvidos para escutar sua história e seus argumentos. 
 
Justíssimo – para eles. 
 
Os réus do mensalão PSDB-MG, acusados pelo mesmo esquema – até as secretárias eram as mesmas -- pelo mesmo ministério público, terão direito a dois julgamentos. Mais antigo que o mensalão-PT, a facção mineira anda mais devagar. A partir de Minas, o processo dará, em sua plenitude, o direito universal a uma segunda jurisprudência. 
 
Aos acusados do PT, haverá, na melhor das hipóteses, meia jurisprudência, torta, mais difícil, complicada e sem dúvida tensa. E mesmo isso pode ser negado.   
 
É falso dizer que não há nada para ser reexaminado. 
 
A noção de que houve desvio de recursos públicos, básica para a denúncia do esquema de “compra de votos”, é desmentida em todos os detalhes por uma auditoria do Banco do Brasil – de onde estes recursos teriam sido extraviados. 
 
As conclusões do documento foram confirmadas e repetidas em juízo, pelo auditor-chefe do Banco, que permanece na instituição até hoje. O tribunal não deu uma resposta clara e explícita a essa questão. O assunto sequer foi respondido no julgamento. Tampouco se explicou por que a direção do banco, vítima do desvio, não se queixou de nada nem foi processada por omissão.  
 
A tese de que o PT recebeu empréstimos fraudados do Banco Rural é desmentida por uma investigação da Polícia Federal. A visão de que o esquema financeiro de Delubio Soares e Marcos Valério destinava-se a comprar votos e subornar deputados, em vez de ser uma operação financeira típica de nosso sistema eleitoral, não conseguiu sustentar-se. Não se aponta um único caso concreto de compra de votos. Nenhum.
 
Havia circulação de dinheiro clandestino, muito dinheiro, mas caberia responder: por que não poderia ser caixa 2 de campanhas eleitorais? Por que tinha de ser compra de parlamentares, suborno? 
 
Se esse dinheiro não veio do Banco do Brasil, como está provado, caberia explicar sua origem. Ninguém tem essa curiosidade? Será que estaria nas empresas que, conforme a CPMI, em seu relatório final, despejaram mais de 200 milhões de reais nos vários mensalões? 
 
As penas de vários réus permitem questionamentos específicos, que deveriam permitir esclarecimentos específicos, como já deixei claro neste espaço e no livro “A Outra História do Mensalão.” 
 
A chantagem em torno do 7 de setembro, que colunistas conservadores praticam abertamente, sem corar, sem preocupar-se com a autonomia do judiciário, cumpre a função de colocar o STF sob pressão para correr com as condenações. 
 
Estimula-se a irracionalidade, cumprindo a profecia de que uma imprensa perversa está condenada a ter leitores perversos.
 
Na medida em que aparecem erros e falhas do processo, é preciso que sejam examinados e discutidos com serenidade. Fica feio colocar a sujeira embaixo do tapete e alegar que é tudo protelação.  
 
Há poucos meses, foi usada a máscara dos Anonymous das passeatas,  para se montar uma farsa contra o Congresso caso os parlamentares não derrubassem a PEC 37, cujo significado ninguém conhecia direito longe do mundo de procuradores, delegados e advogados. 
 
Foi um exemplo de manipulação sem anestesia. Quer-se fazer o mesmo com o Supremo, agora. Resta saber se a mais alta corte irá aceitar isso.
 
Um dos pontos essenciais da atual fase do julgamento envolve o destino de José Dirceu. Tratado como o maior troféu político da Ação Penal 470,  seja pelo PT, seja pelos adversários, Dirceu teve direito a uma biografia vexaminosa,  repleta de erros e incongruências, lançada poucas semanas antes dos embargos – e não é difícil entender a razão de tanta pressa. 
 
O problema é que, vista com frieza, a situação de Dirceu encontra-se numa fronteira insegura para aqueles que apostam em seu linchamento, evitando um exame frio das provas. Olha que curioso. Mesmo apontado como o “chefe da quadrilha”,  faltou apenas um voto para que o próprio Dirceu fosse inocentado justamente do crime de “formação de quadrilha,” no ano passado. Isso porque a própria ideia de que o PT formou uma quadrilha, tão a gosto de adversários, internos e externos do tribunal,  foi perdendo charme e sustentação com o tempo.  
 
Na semana passada, Dirceu obteve 3 votos contra 8 num pedido em que pedia revisão da pena. Não fez maioria. Mas, se tivesse um voto a mais, poderia entrar com novo pedido de embargo e reabrir a discussão. Examinando os critérios usados para condenar Dirceu, Marco Aurélio Mello registrou a incongruência. “Alguma coisa não fecha”, disse, lembrando que em alguns casos as penas foram elevadas em 25% e em outros em 75%. 
 
Dirceu acabou derrotado, num debate onde coube ao ministro Celso de Mello fazer uma intervenção duríssima. Disse que Dirceu foi "autor intelectual, o protagonista" do mensalão. Também afirmou que Dirceu “ concebeu, idealizou, comandou, fez executar, praticou ações criminosas voltadas à permanência de um determinado grupo no poder. Uma estrutura voltada à manipulação fraudulenta do Congresso", afirmou. Celso de Mello disse ainda Dirceu não se mostrou capaz de atuar com "integridade".
 
Na verdade, Dirceu foi condenado pela teoria do domínio do fato, naquela versão tropical que o procurador geral Roberto Gurgel introduziu no julgamento e que foi repudiada por um de seus criadores. 
 
Pode-se até supor, imaginar e acreditar que Dirceu “concebeu, idealizou, comandou” o esquema. O difícil é provar isso. Denunciado pela teoria do domínio do fato, aquele que seria o principal responsável pelo assassinato de irmã Dorothy, e que tinha contra si testemunhos e fatos muito mais graves do que o rosário de impressões lançadas contra Dirceu, acabou liberado em liminar quando o caso chegou ao Supremo. 
 
Conforme advogados em atividade no julgamento, essa situação delicada, entre a prova em que se acredita, mas não se demonstra, explica o comportamento de Celso de Mello. Sem economizar palavras agressivas contra Dirceu, a intervenção do decano se explica, conforme este raciocínio, como um esforço disciplinador para manter os demais juízes em seus lugares, evitando vacilações e mudanças em relação à  decisões anteriores. Por essa razão o ministro não reserva suas colocações para o fim do julgamento, como seria natural no mais velho membro da Corte, mas pede a palavra na fase inicial, quando é possível influenciar os demais.
 
Verdade ou não, em sua fase atual, já tivemos atitudes surpreendentes. 
 
Um ministro, Luiz Roberto Barroso,  mostrou-se  capaz de pensar uma coisa e votar em outra, quando julgou o embargo do ex-deputado Bispo Rodrigues.  
 
Na semana passada, quando chegou a vez de votar sobre José Genoíno, Barroso declarou:
 
“Pessoalmente, lamento condenar um homem que participou da resistência à ditadura no Brasil, num tempo em que isso exigia muitos riscos. Lamento, sobretudo, condenar um homem que leva vida modesta e jamais enriqueceu com a política”, afirmou Barroso, sem dar-se conta de que o lamentável,  na verdade, é assistir à confissão de um ministro da mais alta corte de Justiça admitindo publicamente que lamenta seus votos. 
 
Outro ministro, Teori Zavaski, deixou no ar a sugestão de que os recursos contêm alegações que poderiam levar a uma revisão criminal. Ou seja, um novo julgamento. Mas como, no momento, quando os embargos são debatidos, não se faz nada. 
 
No " maior julgamento da história"  nenhum juiz se atreve a pedir vistas. Nem os recém-chegados. 
 
Na mesma linha de Barroso, a ministra Carmen Lucia lembrou seu voto no ano passado e explicou:  “Ao julgar exatamente o caso de Genoíno fiz a ressalva de que estávamos julgando fatos muitas vezes infelizes e não histórias que são muito dignas.” 
 
Julgamos fatos e não cidadãos? 
 
Por que essa necessidade  de abstrair as coisas?     
 
Quem vai para a cadeia são pessoas, e elas têm história. 
 
A história de Genoíno não precisa de elogios nem lamentos. 
 
Eles podem confortar a consciência de quem fala mas humilham quem ouve. 
 
Nestes tempos em que, com 49 anos de atraso, quase meio século (!), a Globo sente necessidade de dizer que se arrepende do apoio ao golpe de 64, chega ser um insulto falar do passado de Genoíno na luta contra a ditadura. . 
 
O lugar de Genoíno não precisa de enfeites nem remendos. Só quem perdeu a alma não consegue imaginar como isso dói.  
 
Com todo respeito que já manifestei pelos conhecimentos jurídicos do ministro Barroso, e que Carmen Lucia também merece, pergunto: José Genoíno, um dos grandes políticos de sua geração, sete mandatos como parlamentar, deve ser elogiado porque “jamais enriqueceu com a política?” 
 
Desculpe a expressão: que preconceito “Casa Grande” é este?
 
Vamos elogiar Genoíno porque ele não roubou?  Era um destino de cearense, de político, de guerrilheiro, de petista? 
 
Ou vamos expor Genoíno a um pelourinho televisivo, bruto, selvagem, indigno, e depois, com dor no coração, olhar para suas feriras e falar de sua “história digna”?  
 
Quer dizer. O cara chega ser torturado em praça pública no Araguaia, como lição para a população não tem a menor dúvida sobre quem mandava naquele país – onde o Supremo se encolheu, engoliu as próprias cassações e até ajudou a ditadura a livrar-se de um adversário como Chico Pinto – e é Genoíno que precisa palavras bondosas para não sentir-se humilhado? 
 
Não, meus amigos.  
 
A Globo precisa explicar porque esperou 49 anos para fazer auto-crítica. Os ministros fazem uso da palavra para falar de seus lamentos.  
 
Genoíno só precisa da lei e da  justiça. Tem direitos iguais aos 201 milhões de brasileiros. 
 
Basta ler o relatório entregue pelo delegado Luiz Flavio Zampronha para se descobrir que os empréstimos eram reais, não eram fraudados e colocaram dinheiro de verdade nas contas do PT, que redistribuiu os recursos. Genoíno foi condenado por que não se considerou “razoável” nem “plausível” que não “soubesse” do “esquema.” 
 
Mas essa denuncia sobre os empréstimos, aos poucos, foi sendo escondida e deixada de lado, porque era difícil de sustentar. Mas claro que continua sendo repetida, impunemente, até hoje. Porque, para o cidadão comum, é a “prova”.
 
Essa turma vai levar 49 anos para se arrepender, de novo?
 
Não adianta pedir desconto e lembrar que, condenado a uma pena menor, Genoíno terá direito a regime semi-aberto. Não se trata de um premio de consolação nem de uma barganha. O ponto de partida dessa visão é achar que ele merecia ser punido. Está errado. Pune-se, com penas maiores ou menores, quem tem culpa provada, com fatos robustos, inquestionáveis. A menos, claro, que se queira usar Genoíno como exemplo para lembrar, pela segunda vez, quem manda no país.
 
Ninguém precisa ser lembrando disso. Está na cara.