Com jornalistas agredindo juízes e ministros e a proliferação de coleguinhas que, num repente e sem nunca se sentar em carteira de faculdade de direito se travestirem jurisconsultos, criou-se em torno do julgamento da Ação Penal 470 o mito da "opinião pública" que recebeu até desavergonhada defesa de Marco Aurélio Mello em um dos seus arroubos de malandro carioca.
Quem destrincha o assunto de forma cabal é Luciano Martins Costa no sempre bom "Observatório da Imprensa" em uma boa lição para todos nós que temos no jornalismo, profissão:
JULGAMENTO DO MENSALÃO
O que é o ‘clamor popular’?
Por Luciano Martins Costa
Resolvida, pelo Supremo Tribunal Federal, a questão do recurso chamado
embargo infringente, resta na mídia a discussão sobre os efeitos
políticos da decisão. Especula-se agora se e como a extensão do
julgamento, que pode reduzir as penas de alguns dos condenados, poderá
influenciar no resultado da eleição presidencial de 2014. E mais uma
vez, nas páginas dos jornais, as vontades se sobrepõem à realidade e as
opiniões se amontoam sobre os fatos, no festival de lamentações de
articulistas políticos subitamente elevados à condição de
jurisconsultos.
Primeiramente, vamos aos fatos: o voto do ministro Celso de Mello, que
definiu a realização de novas sessões para apreciar recursos de 12 dos
24 condenados, foi considerada por alguns analistas como um modelo de
fundamentação jurídica. Por outros, foi apontado como a porta aberta
para a impunidade.
Compare-se, em integridade e prudência, seu longo arrazoado ao
justificar o voto, com a frase maliciosa e ressentida de outro ministro,
Gilmar Mendes, proferida ao final da sessão de quarta-feira (18/9):
“Posso indicar uma pizzaria para vocês”, disse Mendes a jornalistas.
Essa diferença de comportamento é que delimita os campos entre os quais
balançou a Suprema Corte ao deslizar sobre a lâmina da subjetiva a
respeito da aceitação ou não dos embargos infringentes.
Quem leva o Judiciário a um ponto mais próximo do desrespeito e da
avacalhação? Aquele que se mantém fiel à norma legal, mesmo correndo o
risco de ser criticado pela imprensa, ou aquele que, curvando-se aos
editoriais, procura desmoralizar a instituição referindo-se
grosseiramente à hipótese de ter havido um acerto em favor da impunidade
dos réus?
Se houve um divisor de águas, em relação à tradição do Supremo Tribunal
Federal, ao longo do julgamento da Ação Penal 470, ele se define no
voto do ministro Celso de Mello, e não nas etapas anteriores do
processo.
É quando o magistrado se desvincula do ambiente externo ao sistema das
leis que se concretiza sua independência, e o voto de Mello
explicitamente declara que os ruídos criados ou amplificados pela
imprensa não devem entrar na composição dos juízos da corte.
Por isso se diz que o fazer Justiça é um ato cumprido na extrema solidão.
Contabilizando sentimentos
Segundamente, vamos às vontades: basicamente, todas as manifestações
contrárias à validade do embargo infringente tinham como argumento
central o suposto “clamor popular”. É em torno dessa ficção que se
constroem frases insidiosas como a do ministro Gilmar Mendes. Acontece
que essa é uma expressão sem significado, uma nulidade no discurso
jornalístico, um lugar comum como, por exemplo, “comoção popular”,
banido há décadas das boas redações.
Na suposta objetividade da linguagem jornalística, não cabem esses
jargões, que os profissionais do jornalismo impresso costumavam chamar
de “clichês”. No entanto, é essa manifestação de vontade, que tenta
amplificar um estado de espírito impossível de se comprovar, que
fundamenta todos os artigos que criticam o voto de Celso de Mello.
Observe-se, por exemplo, que na suposta pesquisa de opinião feita pelo
Instituto Datafolha e divulgada na quarta-feira (18), o dado mais
consistente informa que apenas 19% dos paulistanos consultados se
consideram razoavelmente informados sobre o caso chamado de “mensalão”.
Onde estaria, portanto, o “clamor popular” que supostamente deveria ser
levado em conta pelo STF e que, declaradamente, definiu os votos de
cinco dos onze ministros?
Ainda que houvesse e que fosse possível quantificar um suposto
sentimento coletivo, explicitado em vozerio incontestável, em favor do
encarceramento imediato dos condenados, o papel da imprensa deveria ser o
de confrontar tal sentimento com o que diz a lei, na interpretação
especializada dos juristas.
São incomuns os casos em que uma opinião massiva pode ser definida
objetivamente na diversidade dos juízos que os acontecimentos produzem
na coletividade. Por exemplo, quando houve o massacre de pelo menos 111
presidiários no antigo complexo do Carandiru, em São Paulo, em outubro
de 1992, quase 80% das cartas enviadas à redação do Estado de S. Paulo
defendiam a violência policial. Contra essa onda de irracionalidade, o
então diretor responsável do jornal, Júlio Mesquita Neto, determinou que
os jornalistas mantivessem o noticiário crítico, correndo o risco de
perder centenas, talvez milhares de assinantes.
No caso do chamado “mensalão”, o tal “clamor popular” é um biombo atrás
do qual se escondem cabos eleitorais com carteirinha de jornalista.