Do "Direto da Redação"
Sofismas neoliberais
Rodolpho Motta Lima
Sem medo de cometer injustiças, mas sempre no exercício livre da
opinião, afirmo que Luís Fernando Veríssimo é o maior e melhor dos
cronistas em atividade na mídia nacional, não apenas pelo sabor que
imprime ao seu texto, mas também pela visão do mundo que revela, como
alguém permanentemente atento à realidade e às suas estranhas – e muitas
vezes perversas – contradições.
Estava aqui relendo uma crônica que ele escreveu em 24.03.2000 – lá
se vão 13 anos - , intitulada “Silogismo”. Veríssimo tratava, então, de
um posicionamento do governo tucano de FHC, que assegurava não poder dar
aos trabalhadores um salário-mínimo que corrigisse as perdas de então,
porque isso “comprometeria o programa de estabilização do Governo, quebraria a Previdência, inviabilizaria o país”. Era o mantra neoliberal daquela época, que rotulava de irresponsáveis e demagogos quem pensava o contrário.
Veríssimo argumentava, então, com o que denominou “um silogismo
bárbaro”: se o salário-mínimo concedido não dava para boa parte da
população viver dignamente e se não havia como mudar o panorama (na
visão do Governo), uma parcela ponderável do povo estaria condenada “a
uma subvida perpétua”, por força de uma política que, subserviente a
interesses financeiros internacionais, fundamentava-se na miséria...
Essas e outras visões do pessoal tucano acabaram por desmascarar os
milagres que então se apregoavam. Um deles: um “plano real” que era
apresentado como produto genuinamente nacional – com direito a heróis e
tudo mais - quando, na realidade, era uma necessidade/imposição do
mercado globalizado, tanto que, em um passe de mágica, todas as
economias de alguma relevância no planeta tiveram então a inflação
estabilizada...
Os governos que se seguiram - fruto da saudável decisão popular nas
urnas que, quando convém, os demotucanos esquecem - não chegaram a
inverter , infelizmente, essa postura de subserviência a um mercado
infame em que especuladores, empreiteiros e banqueiros ainda dão as
cartas. Conseguiram, no entanto, medidas pontuais que, aqui e ali, estão
atuando no sentido de diminuir a perversidade do sistema entre nós, com
políticas públicas que apontam para a preocupação com os menos
favorecidos.
Estão aí as diversas “bolsas” que a direita tanto abomina
(“Como podem gastar o meu dinheiro com esse bando de desocupados?”);
está aí o sistema de cotas que provoca a ira pouco santa das elites
(“Isso está estimulando o preconceito racial !”); estão aí, agora, os
direitos concedidos às empregadas domésticas secularmente exploradas
(“Mas isso vai provocar muitas demissões e um descontrole no âmbito
familiar!”).
Não é preciso ser petista, lulista ou qualquer outro ista para
perceber a diferença que existe entre o Brasil de hoje e o de então. E,
invariavelmente, quando se tenta estabelecer esse paralelo, surge aquela
pergunta orquestrada, para fugir do assunto: “Mas... e o mensalão?”.
A pergunta traz embutida, de modo subliminar, a tentativa de fazer
vingar uma tese esquisita, beirando a paranoia : a de que o pessoal que
se preocupa com as necessidades populares é essencialmente corrupto...
A
pergunta desconhece a história desse país, desde as Capitanias
hereditárias, desconhece as folclóricas frases do “Roubo mais faço” de
próceres paulistas, desconhece a corrupção no regime militar das obras
faraônicas, desconhece (ou finge desconhecer) a Privataria tucana, o
mensalão mineiro (também tucano); desconhece/esquece a nunca apurada,
mas sempre denunciada, compra de votos para reeleição de um Presidente
da República (o que equivaleu a quatro anos de poder e de manutenção de
interesse econômicos que é fácil adivinhar...).
O perverso silogismo de Veríssimo volta a atacar, agora, sob nova
roupagem, mas com os mesmos atores, diante de posturas e medidas
governamentais. Se a Presidenta menciona que o mais importante para o
país é a preservação e o incremento das conquistas sociais, as
cassandras de plantão apontam para o “nervosismo do mercado”, que,
“preocupado”, vê nessas palavras o perigo da “volta da inflação”... Uma
chantagem, um estelionato ideológico, que a mídia comprometida repete à
exaustão...
No momento em que o país atinge o menor nível de desemprego desde que
ele é medido, esse dado, ao invés de ser tratado com o louvor que
realmente merece, é sutilmente apresentado como “preocupante”, porque
inibe a produtividade, vira custo para a indústria em função da
valorização do empregado, “freia o PIB”, “trava o crescimento”. Ou seja,
o pessoal neoliberal, coerente na sua perversidade, não muda mesmo.
Para eles, o bom seria ter sempre à mão uma boa “reserva de mão de
obra”, que alguns economistas de plantão a serviço dos exploradores
chamam de “estoque”, reduzindo homens a coisas...
Felizmente, do lado de cá , o Veríssimo e sua visão do mundo também
não mudam. E, como ele, pensam muitos dos cidadãos que, famosos ou
desconhecidos, constituem o povo brasileiro.
Se estivesse entre os
vivos, Gonzaguinha responderia a esse pessoal que anseia pelo desemprego
com os versos da sua composição “Um homem também chora”: “Um
homem se humilha / Se castram seu sonho / Seu sonho é sua vida / E vida é
trabalho / E sem o seu trabalho / Um homem não tem honra / E sem a sua
honra / Se morre, se mata / Não dá pra ser feliz / Não dá pra ser feliz “.
Rodolpho Motta Lima
Advogado
formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil)
e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado
pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de
Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente
no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.