Inspiração ideológica
Por Roberto Amaral
Não se discute o reacionarismo da ‘grande imprensa’ no Brasil (eu
havia escrito ‘da imprensa brasileira’, mas pensei melhor); a questão é
seu entranhado entreguismo, pois, para ser de direita não precisa ser
entreguista. A imprensa dos EUA, por exemplo, embora conservadora, é
nacionalista… É este, aliás, o único ponto em que a imprensa aqui
instalada se afasta de sua congênere norte-americana: vive de costas
para os interesses nacionais.
A explicação, porém, é fácil: no reverso, para atender aos interesses
dos EUA (mais precisamente da dupla Pentágono-Departamento de Estado,
e, logo, Departamento de Comércio), ela, essa imprensa, precisa ser
antinacional. Por isso, em seu viés, o Brasil pode até crescer, desde
que jamais ouse deixar de ser ‘quintal’ do grande ‘irmão do Norte’. Pode
até ser rico, o Brasil, para poder ser bom comprador; contanto que
jamais ouse qualquer arroubo de autonomia.
Nossas ‘elites’, ideologicamente colonizadas, não entendem que um
país mestiço possa ter política externa, mormente ditada pelos seus
próprios interesses.
Não é de hoje. Não é anti-lulismo, embora tenha encontrado nessa
paixão política terreno fértil para se desenvolver. A grande imprensa,
que ainda hoje odeia a Petrobras (que deslocou a Esso de nosso
território), foi sempre contra a exploração brasileira do petróleo
brasileiro. Chegou mesmo a defender a tese de que não devíamos gastar
dinheiro procurando um ‘óleo que não tínhamos’, se podíamos comprá-lo
das ‘sete irmãs’. Foi contra a triticultura brasileira, pois deveríamos
comprar o trigo subsidiado do Ponto IV, quando os EUA renovavam seus
estoques de Guerra. Foi contra a industri alização do país. Repercutindo
as teses de Eugênio Gudin, dizia-nos que nossa vocação, de país
agrícola ‘por natureza’, era a de ser, palavras de hoje, ‘a grande
fazenda do Ocidente’. Jamais gostou da democracia. Foi contra a posse de
JK, contra a posse de Jango, a favor do golpe de 1964 e do regime
militar, cuja implantação defendeu com entusiasmo, dando-lhe
sustentação, até o momento em que, como genipapo maduro, a ditadura
anunciou que ia cair do galho.
O ódio a Vargas vinha daí, não da ditadura do Estado Novo, mas do
Vargas do regime democrático; não fôra ele defensor dos interesses
nacionais em conflito com o imperialismo (recomendo a releitura de sua
‘Carta-testamento’; está no Google). Vem, também de seu ranço
anti-popular, o ranço das ‘elites’ que os meios de comunicação
repercutem, pois Vargas foi o fundador do trabalhismo brasileiro.
Nossa velha imprensa nunca aceitou a ‘política externa independente’.
Apoiou com denodo, e unanimidade, a aventura janista. Mas logo,
comandada por Lacerda, passou a hostilizar o governo de JQ. Qual a
motivação? Seus arreganhos autoritários? Seus delírios bonapartistas?
Não, o inimigo era a política externa independente, elucubrada pelo
presidente e exemplarmente formulada e executada por Afonso Arinos.
Anti-democrática, defendeu a tentativa de golpe contra a posse de
Jango. Depois, sempre comandada ideologicamente pelo lacerdismo mais
tacanho (pensei em escrever ‘abjeto’, mas…) partiu para a conspiração e a
oposição mais desabrida, de que é exemplo paradigmático o famoso
editorial “Fora”, do ‘liberal’ Correio da Manhã de 1º de abril de 1964 (vide: http://www.gedm.ifcs.ufrj.br/upload/documentos/44.pdf). O que a incomodava, senão a política externa independente comandada pelo gênio de San Tiago Dantas?
Dócil e cevada, bem cevada com canais de rádio e de televisão para
incensar a ditadura de 64, sempre torceu o nariz para tudo que
contrariasse os interesses do Departamento de Estado dos EUA. Ora,
Geisel chegou a romper com o acordo militar Brasil-EUA e defender,
contra a sabotagem estadunidense, o acordo nuclear com a Alemanha. Essa
imprensa detestava Silveirinha, pois para ela o modelo de bom chanceler
era o general Juracy Magalhães, para quem ‘o que é bom para os EUA é [era]
bom para o Brasil”. Por essas mesmas razões não se cansou em render
loas à diplomacia de FHC, aquela na qual nosso chanceler tirava os
sapatos para ingressar no solo norte-americano; é a mesma imprensa que
então e agora devotava e devota ódio à trinca Amorim-Marco
Aurélio-Samuel Guimarães, que, sob o comando de Lula, recolocou nossa
politica externa no campo da dignidade.
A grande imprensa, por definição, está a serviço dos interesses de
classe, isto é, da classe dominante, isto é, do empresariado. No Brasil,
porém, ela contraria os interesses de nosso empresariado, ou seja, do
capitalismo caboclo, para quem é importante vender para a China, para
quem é importante vender para a Venezuela, para quem é importante o
MERCOSUL e o hemisfério Sul, em geral, e a África em particular (coisa
que os chineses não ignoram). Mas, a chamada mídia (um monopólio
ideológico e empresarial inaceitável numa democracia que se preze) não
está comprometida, sequer, com o capitalismo brasileiro, pois se ela é
fiel servidora de interesses externos, ela é servidora, antes de tudo,
do capitalismo norte-americano, de seu imperialismo (vá lá a palavra
detestada pelos ‘liberais’ mas sempre exata) político e econômico, ainda
presa, anacronicamente, a uma Guerra Fria que ela vai recolher na
leitura da concordatária Seleções.
Nosso empresariado dos meios de comunicação de massas é contra a
expansão de nossos interesses na América Latina, é contra a abertura de
novos mercados para além dos EUA, e é a favor, ainda hoje!, da falecida
ALCA , que, ao fim e ao cabo, pretendia nossa anexação.
Essas considerações me são provocadas pela leitura do editorial ‘Inspiração ideológica’ do último dia 18 deste março, de um grande matutino brasileiro.
Começa, o editorial, curiosamente, por chamar nossa atual política
externa de ideológica, para criticá-la, como se a própria crítica do
jornal não fosse, em si, uma formulação ideológica…, para em seguida de
fato defender nosso isolamento do sub-continente sul-americano.
Essa
tese vem dos tempos coloniais! É contra a aproximação com nossos
vizinhos, particularmente com a Argentina (porque é governada por uma
Kirschner), contra a Bolívia (porque é governada por Evo Morales),
contra o Equador (porque é governado por Rafael Correa). Porque todos
eles põem acima dos interesses dos EUA os interesses de seus povos.
Isto está dito com todas as letras: esses países ‘são
aintiimperalistas.’ Ao imperialismo deveriam ser dóceis. Essa mesma
imprensa foi contra nossa aproximação com o Paraguai quando era
governado por Lugo, e agora defende nossa aproximação porque Lugo foi
defenestrado por um golpe-de-Estado parlamentar. Diz que não podemos
afrontar os EUA, e uma maneira de afrontá-los, é aceitar que a China
venha ‘substituindo os EUA como grande parceiro comercial do Brasil’.
Reclama porque não brigamos com a Bolívia quando esta ocupou uma
instalação da Petrobras. Defende a posição pusilânime dos EUA no golpe
em Honduras, e acusa nossa posição ali – de firme defesa democrática –
como ‘apelo ideológico’.
Quer que o Brasil se dilua no NAFTA (tratado entre os EUA o Canadá e o
México, esses, dois países virtualmente sem soberania, até por uma
tragédia geográfica) para, afinal, sucumbirmos na ALCA, Aliança de Livre
Comércio das Américas, fazendo de nós todos a colônia que já fomos de
Portugal e Espanha, agora sob outra bandeira.
É por ignorância larvar ou má-fé medular que nossas ‘elites’ não
entendem a proposta estratégica de nossa presença na América Latina e na
África?
O editorial do grande jornal é contra a presença da
Venezuela no Mercosul, a maior reserva de petróleo do mundo, e onde
estão instalados significativos interesses brasileiros.
À conta do
chavismo, em que pese a partida de Chávez.
E por que o jornalão é contra o chavismo? Simplesmente porque essa
‘ideologia’ combate, nas terras venezuelanas, o imperialismo
norte-americano que levou o povo daquele país riquíssimo à pobreza
extrema. A Venezuela não pode integrar o MERCOSUL porque se trata de
uma nação ‘inimiga do maior Mercado consumidor do mundo, os EUA’. E aí, o
editorialista confunde, numa grosseira contradição ideológica, o país
Venezuela, uma permanência, com o chavismo, um processo político-social
datado. Mais ainda: ignora, por má fé, a profunda relação comercial que
os EUA mantêm com a Venezuela.
Afinal, esse editorial é tão sintomático do reacionarismo
antinacional, que deve ter sido escrito (embora corrigido formalmente
pelo copydesk do jornal), por um qualquer dos nossos
embaixadores de pijama, recalcados irrecuperáveis, viúvas do ‘Consenso
de Washington’, alguns abrigados (salarialmente) na Fiesp, que,
supunha-se, estaria a serviço dos interesses dos empresários
brasileiros.
Com que Brasil sonha a velha imprensa?
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/inspiracao-ideologica/?autor=593