Flavio Aguiar escreve lá no Blog do Velho Mundo no site da Rede Brasil Atual um excelente texto sobre os dias de hoje:
Futebol passarinho
Não se negam as mazelas do nosso
país. Mas as marteladas são tais que deixam a conotação de que ele é a
cloaca do mundo, reduzindo nossa complexidade a um amontado de lugares
comuns
por Flávio Aguiar, para a Rede Brasil Atual
Alguém vai erguer a taça aos céus, renovando a consagração, oficiada por Bellini naquele junho de 1958
A realização da Copa do Mundo no Brasil despertou
uma grotesca procissão – cada vez mais enfadonha – de abutres e coveiros
do Brasil em todas as frentes e latitudes. Erguendo uma verdadeira
cortina de fumaça com seus incensórios e turíbulos para dominar a pauta e
a percepção do momento, este variegado cortejo reúne de tudo.
Conduzindo a custódia, vêm os que querem derrubar ou derrotar o governo. São de dentro e de fora do país, liderados neste pelos arautos da velha mídia, e lá pelos cardeais da City londrina, The Economist e Financial Times, ladeados por bispos e arcebispos como El País, El Mercurio et alii.
Em suas orações às vezes suplicantes, às vezes raivosas, alimentam a
crendice de que a Copa pode ajudar a reeleger ou deseleger Dilma
Rousseff em outubro. Esta ortodoxia se baseia em outra superstição, a de
que nosso povo é despreparado para a democracia porque vota com os pés
ou o estômago – não com a cabeça ou o coração (os mais ricos, pelo
menos, têm o privilégio de votar com os bolsos e as bolsas).
Esta superstição tem uma variante à extrema-esquerda, qual seja, a de
que as massas são sempre despreparadas, e que precisam de uma vanguarda
lúcida para iluminar-lhes o caminho. O governo é o anticristo que deve
ser eliminado, para que a verdadeira luz possa chegar aos fiéis. Então,
dá-lhe foguetório e até louvação dos coquetéis molotovs dos black blocs,
além das pedradas, sejam contra vitrines bancárias ou a embaixada do
Brasil em Berlim.
Mas há também o coro dos sacristãos. Dispersos pelo mundo inteiro, no
nosso país ou pontificando na mídia europeia, nunca se viram tantos
doutos intérpretes do Brasil. Qualquer jeguelhé joga suas jeguelhadas
sobre a nossa “cultura da corrupção”, o nosso incurável pendor para a
“violência”, para depender de “favores”, a nossa crônica “homofobia”, o
nosso empedernido “machismo”, a nossa proverbial incompatibilidade com o
“moderno”, o nosso sempiterno “racismo”, a nossa tara da “escravidão”,
nossa inamovível “pobreza”, “falta de cultura”, “falta de projeção
mundial”, onde se ajuntam nossa incapacidade para ganhar um prêmio
Nobel, nossa música que “não tem o mesmo alcance mundial da salsa ou do
reggae”, e por aí se vai.
Conforme o ângulo de onde fala o distinto se multiplicam os pronomes
“nós” (a propósito, nós quem, cara-pálida?) ou o substantivo plural e
coletivizado “os brasileiros”. Não se trata de negar que aquelas mazelas
existam em nosso país. Mas as marteladas são tais que deixam a
conotação de que ele é a cloaca do mundo, e que elas são nosso
patrimônio exclusivo.
Assim, um país de 200 milhões de habitantes, oito mil quilômetros de
comprido por oito mil de largo, com uma das economias mais complexas e
uma cultura das mais ricas do mundo, se vê reduzido a uns poucos lugares
comuns, repetidos ad nauseam como se fossem grandes
originalidades, descobertas, quando na verdade simplesmente invertem
disforicamente a perspectiva dos outros lugares comuns – os eufóricos –
da cordialidade, índole pacífica, democracia racial etc. etc. etc.
Estas
ou estes vestais do templo jornalístico acham que estão inventando, em
seu laboratório, o “verdadeiro” Brasil, quando de fato fazem parte
simplesmente do ciclo que a medicina antiga chamava de
“maníaco-depressivo”. Tenho, inclusive, a certeza de que aqueles
defeitos de nosso “caráter” desaparecerão de muitos dos discursos como
por encanto em novembro, caso alguma oposição vença em outubro.
E no passar da procissão sobem aos céus – ou descem aos infernos – as
comparações absurdas, como as do momento atual com a ditadura de 1970;
ou as inverdades marteladas, como a de que é a Copa que está roubando
dinheiro da educação e da saúde (em vez de o superávit primário e da
extinção da CPMF); levantam-se os estandartes oportunistas anti-Copa,
juntando-se a reivindicações legítimas em campos como educação, saúde
etc., ajudando a esvaziá-las, em troca de quinze letras ou quinze
segundos de fama nas manchetes ou telas nacionais e internacionais.
Fica difícil discernir o real para além deste fumacê de crendices.
Mas num raro momento em que consegui me desligar desta atmosfera
asfixiante, por uma nesga da cortina tive uma visão deslumbrante (já que
para estes sacerdotes do caos devo ser um destes caiporas, que pensa
com os pés, embora eu tenha sido goleiro, e não com o cérebro e o
miocárdio). De repente, num estalo de Vieira, vi que no dia 13 de julho,
em pleno Maracanã, alguém vai erguer a taça aos céus, renovando mais
uma vez a sua consagração, oficiada por Bellini naquele 29 de junho de
1958, no estádio Rasunda, em Estocolmo, na Suécia.
Como acontecia na época, ouvi tudo pelo rádio e vi em fotos no dia
seguinte e somente algum tempo depois pude assistir nos cinemas à missa
gloriosa daquela partida e daquele verdadeiro gestus brechtiano, stanilavskiano, da sagração da Jules Rimet. De fato, foi ali que o caneco ficou sendo nosso, realidade apenas confirmada em 1970.
Naquele momento houve uma verdadeira transubstanciação (como na missa
católica). Foi ali num gesto que começou prosaico (“mostra a taça,
Bellini, pra que a gente consiga fazer uma foto melhor”, pediram os
jornalistas) e se transformou no gesto teatral que transformou a Taça
Jules Rimet ou do Mundo no imortal Caneco do Brasil. Dali para frente,
em qualquer arena, em qualquer parte do mundo, da várzea mais pobre ao
estádio mais suntuoso, espraiou-se o gesto de erguer a taça da vitória.
Foi ali, naquele gestus, que a taça se transfigurou em cálice,
cheio de sangue, suor e lágrimas, o sangue e o suor que se dão dentro
das quatro linhas, e as lágrimas da vitória ou da derrota, como as que
foram derramadas em 29 de junho de 1958, em Rasunda, ou em 16 de julho
de 1950, no Maracanã.
Isto porque o futebol tem algo de muito parecido com a situação de
dois amantes. Por mais história anterior que haja, condições de vida e
condicionamentos anteriores, labirintos percorridos ou expectativas de
caminhos futuros, oposições familiares ou cumplicidade de amigos, egos e
superegos a equilibrar e a vencer etc. etc. etc., sempre há o momento
em que os amantes estão frente a frente, fechados no círculo sagrado do
imortal gestus amoroso, tenha este círculo o formato que tiver: cama, tapete, sofá, esquina, degrau de escada, chuveiro, não importa.
No futebol há a mesma magia da presença de um espaço do sagrado. Por
mais distâncias geográficas, sociais, políticas, culturais e outras que
os times oficiantes percorram, por mais cartolas que haja, tudo se fecha
naqueles momentos “dentro das quatro linhas” em que os oficiantes –
jogadores, técnicos, bancos de reservas, massagistas, torcidas e até
gandulas, juízes e bandeirinhas, vão se medir e oficiar o sagrado rito
da vitória, derrota ou empate.
A transubstanciação simbólica se confirma pela mudança de gênero e de
registro linguísticos, que nada tem a ver com machismo, sexo ou
preconceito: a taça aristocrática passou a ser o caneco popular. Aliás,
se a gente olhar bem, dá para ver que a forma exterior daquela Jules
Rimet tinha menos a ver com uma genérica caneca do que com um caneco –
definido como uma “caneca alta e estreita” (Houaiss). Daí pra frente,
não importava o formato do troféu: o vencedor “levava o caneco pra
casa”. E ainda leva. E vai levar, pelos séculos dos séculos, amém.
Tenho diante de mim duas fotos: Fritz Walter, o capitão de 1954,
levado em triunfo pela torcida em Berna, na Suíça. Ele segura a taça
como se ela fosse feita para tomar a popular cerveja, ou a aristocrática
champanhe: um objeto prosaico; e Bellini, erguendo o troféu sagrado,
como se ele fosse um elo de ligação entre o céu e a terra, como as mãos
para o alto do suplicante, o cajado do peregrino, o olhar do amante que
se perde e se encontra no universo.
No 13 de julho de 2014, em pleno Maracanã, alguém vai erguer a taça aos céus e levar o caneco pra casa.
Por isto, por sobre a malta velhaca e falsária das senectudes
tremulinas (Maiakovski + Mário de Andrade), gloso Mário Quintana: Os
abutres, que hoje atravancam o caminho, eles passarão. O futebol,
passarinho.
*Originalmente publicado no Blog da Boitempo.