O site da revista Carta Capital publica detalhado texto sobre a intervenção militar americana no Golpé de 1964 com dados irrefutáveis em artigo do cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira...
Política
Especial 50 anos do golpe
Tio Sam dá as cartas
A participação central dos Estados Unidos na articulação civil-militar contra o governo
por Luiz Alberto Moniz Bandeira
The Art Archive/National Archives Washington DC
Quando jânio Quadros renunciou à
Presidência da República em 25 de agosto de 1961 e o governador Leonel
Brizola levantou o Rio Grande do Sul, com o apoio do III Exército, a fim
de garantir a ascensão ao governo do vice-presidente João Goulart,
Richard Nixon, do partido republicano, proclamou ter chegado a hora de
intervir militarmente no Brasil.
O ministro-conselheiro Carlos Alfredo
Bernardes, então encarregado de negócios do País em Washington, leu essa
declaração, divulgada por uma agência de notícias nos EUA, mas ela não
teve maior repercussão. A mídia nativa não a divulgou.
Podia ser bravata de Richard Nixon,
ex-vice-presidente de Dwight Eisenhower, derrotado na eleição para a
Presidência dos Estados Unidos pelo democrata John Kennedy. Este,
investido no governo dos EUA, não iria evidentemente arriscar seu país
em uma aventura de repercussões e consequências imprevisíveis somente
para atender às pressões internas da direita e de um republicano
frustrado como Nixon. Entretanto, desde a administração do presidente
Eisenhower, Washington suspeitava das tendências políticas de Goulart, e
Kennedy não fez declaração alguma em defesa da manutenção do princípio
constitucional quando os ministros militares – marechal Odylio Denys
(Guerra), vice-almirante Sylvio Heck (Marinha) e brigadeiro do ar
Gabriel Grün Moss – tentaram impedir que Goulart sucedesse a Jânio
Quadros. Ele percebia os acontecimentos na América Latina e a crise no
Brasil sob o prisma de manobras da Guerra Fria.
A partir de 1961, talvez antes até, a
atenção de Washington voltou-se sobretudo para o Nordeste do Brasil,
graças à emergência das Ligas Camponesas e à influência da Revolução
Cubana, e a perspectiva de uma intervenção militar entrou na agenda do
Pentágono.
O consulado no Recife, elevado a consulado-geral, tornou-se
virtualmente uma estação da CIA, assim como todos os outros consulados
nas diversas cidades do País. Houve forte aumento do contingente de
servidores e quase todos eram agentes disfarçados sob o manto da
administração dos programas da Usaid. Em Pernambuco foi criada a
Cooperative League of the United States of America (Clusa), pela qual a
CIA, sob a cobertura de determinadas fundações, canalizava os recursos
para as atividades de inteligência.
Como funcionários da Usaid, inúmeros
agentes da CIA foram enviados, entre os quais Dan Mitrione
(posteriormente executado no Uruguai), com a tarefa de “aperfeiçoar”
suas forças policiais, e Lauren J. (Jack) Goin, como assessor de
investigação científica. Em 1964, o número de funcionários da embaixada e
dos diversos consulados e serviços dos EUA ultrapassava, no Brasil,
quatro centenas, conforme a Foreign Service List publicada pelo
Departamento de Estado.
Mais de 5 mil ou 6 mil espalhavam-se pelo
País. A partir de 1961, o Departamento de Estado começara a solicitar
ao Itamaraty vistos para cidadãos americanos, que entravam no Brasil sob
os mais diferentes disfarces (religiosos, jornalistas, comerciantes
etc.), e a maioria dirigia-se para o Nordeste. Na verdade, tais cidadãos
pertenciam às “special forces” (Green Berets – Boinas Verdes),
despachados pelo Counter-Intelligence (C-I) Group, que o general Maxwell
Taylor comandava, bem como à CIA.
O deputado José Joffily, do PSD,
denunciou o fato da tribuna da Câmara Federal em meados de 1962. No
princípio de 1963, o jornalista José Frejat, em O Semanário,
revelou que mais de 5 mil militares americanos, “fantasiados de civis”,
desenvolviam no Nordeste intenso trabalho de espionagem e desagregação,
para dividir o território nacional. Se a guerra civil eclodisse, segundo
ele, a esquadra do Caribe estaria pronta para apoiar as atividades dos
supostos civis americanos, com armas e tropas. Até 1963, o Itamaraty
concedera mais de 4 mil vistos e recebera solicitação para mais 3 mil,
cujo atendimento os militares nacionalistas brasileiros obstaram.
O enorme número de vistos requeridos pela
Embaixada dos Estados Unidos começou em 1961, no governo de Jânio
Quadros, o que causou estranheza ao então chanceler Afonso Arinos de
Melo Franco. Em nenhuma das edições do Anuário Estatístico do IBGE
consta, porém, o número de americanos desembarcados no Brasil naquele
ano. Continuou no curso de 1962, após a ascensão de Goulart à
Presidência da República.
Renato Archer, subsecretário de Estado para as
Relações Exteriores e ministro interino durante o governo
parlamentarista do primeiro-ministro Tancredo Neves, de 1961 a 1962,
interpelou o embaixador Lincoln Gordon sobre qual o objetivo de tantos
cidadãos dos EUA no Brasil. A resposta do diplomata foi evasiva.
Declarou que apenas 2 mil americanos utilizaram a autorização e que os
demais vistos ficariam como reservas.
Kennedy considerava a América Latina a área mais
perigosa, no contexto da Guerra Fria, e temia a eclosão de uma
insurreição no Nordeste por causa das atividades das Ligas Camponesas
sob a liderança de Francisco Julião. A presença de tantos americanos no
Nordeste inquietou, entretanto, o governador Miguel Arraes, e o deputado
Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, agitou publicamente o
problema e perguntou no Congresso: “Por que infestam nosso Nordeste,
segundo notícias apresentadas à Câmara e baseadas em dados sobre os
passaportes, aos milhares, como uma praga maldita? Pois não estão aqui
como amigos, mas como inimigos”.
Os americanos enviados ao Brasil eram
instruídos e treinados em táticas e técnicas militares e paramilitares
para o combate à insurgência, em Fort Bragg, Carolina do Norte, onde até
diplomatas e funcionários do Departamento de Estado faziam cursos.
Esses militares, conhecidos como boinas verdes, atuavam em cerca de 50
países com a tarefa de combater movimentos de esquerda e reprimir
insurreições.
Se um levante irrompesse no Nordeste, como o Pentágono e a
CIA receavam, ou o governo do presidente Goulart virasse decididamente
para a esquerda, eles sustentariam focos de resistência, promoveriam
guerrilhas ou antiguerrilhas, o que justificaria até o desembarque de marines, “a pedido” ou para “salvar vidas de cidadãos americanos”.
A primeira equipe chegou ao Brasil em 8
de outubro de 1962, após as eleições, integrada pelos representantes da
CIA, AID, Usia e chefiada pelo banqueiro William H. Drapper, que manteve
diversos contatos com integrantes da comunidade empresarial americana. A
refletir suas opiniões, sugeriu ao secretário de Estado Dean Rusk que
os EUA recusassem qualquer ajuda financeira ao Brasil, até Goulart
aplicar um plano de estabilização monetária satisfatório para o FMI ou
tender mais para a esquerda, possibilitando a “polarização das forças
políticas domésticas” e o golpe de Estado, com a instauração de forte
regime militar de direita, “mais bem orientado para os Estados Unidos”.
Em 22 de novembro de 1963, dia em que Kennedy foi assassinado, quatro
generais americanos – John W. O’Daniel (reformado), Samuel T. Williams
(reformado), Lionel McGarr, comandante do Military Assistance Advisory
Group (Maag) e Maxwell D. Taylor, chefe Joint Chiefs of Staff
(Estado-Maior Conjunto) – chegaram ao Brasil, onde conversaram com seus
colegas brasileiros e se reuniram com os governadores Adhemar de Barros e
Carlos Lacerda.
A conspiração, estimulada pelo aguçamento
das contradições internas, evoluiu da defensiva, como alguns dos seus
líderes a apresentavam, para a ofensiva, não rumo a um desfecho pelo
golpe de Estado clássico, mas de uma guerra civil, que se arrastaria por
quatro, cinco, seis meses ou mais.
Sua estratégia esteava-se na
sublevação de ao menos três estados (Minas Gerais, São Paulo e
Guanabara) e envolveria também Espírito Santo, Goiás e Mato Grosso. Os
artífices do golpe – entre eles o embaixador Lincoln Gordon e o coronel
Vernon Walters, agente da Defence Intelligence Agency (DIA) e cujo
codinome era Arma – avaliavam que em nenhum dos estados o levante
ocorreria sem reação interna e que as tropas do I Exército,
comandadas por oficiais nacionalistas, esmagariam o governo de Lacerda
na Guanabara.
Também contavam com a possibilidade de instalação de um
governo de esquerda no Nordeste, a erupção de focos de guerrilhas no
Centro e no Sul e a necessidade de enfrentar o que denominavam de V
Exército, os trabalhadores, camponeses e estudantes. Em 31 de março, ao
começar o levante, o senador Afonso Arinos de Melo Franco informou a
Francisco de San Tiago Dantas que Washington não apenas o respaldava
como reconheceria a beligerância de Minas Gerais e interviria
militarmente no Brasil, em caso de guerra civil. San Tiago Dantas,
horrorizado, advertiu-o para a gravidade e as consequências da secessão
do Brasil e transmitiu a informação ao presidente Goulart.
Os oficiais brasileiros à frente da
conspiração, sobretudo o general Humberto Castello Branco, estavam em
estreito entendimento com o coronel Walters e outros agentes. Conforme
revelou o general Carlos Luiz Guedes, comandante da 4ª Divisão de
Infantaria de Minas Gerais, os chefes do levante acertaram com Walters e
um tal agente da CIA chamado Lawrence (possivelmente John O. Lawrence
ou Lawrence A. Penn, funcionários da embaixada) que o fornecimento de
petróleo e material bélico pelos EUA seria feito por meio do porto de
Vitória e da estrada de ferro da Vale do Rio Doce.
Quando o movimento das tropas começou, o cônsul
americano em Belo Horizonte, Herbert Okun, compadre de Walters, procurou
o governador Magalhães Pinto para reiterar o apoio de seu país.
No
mesmo dia 31 de março, Washington, a pedido do embaixador Gordon,
acionou a Operação Brother Sam, composta pelo porta-aviões USS
Forrestal, destróieres de apoio, navios repletos de armas e mantimentos,
além de quatro petroleiros carregados com 136 mil barris de gasolina,
272 mil de combustível para jatos, 87 mil de combustível para aviões, 35
mil de óleo diesel e 20 mil de querosene.
A fim de atender às necessidades mais urgentes dos
golpistas, foram despachados sete aviões de transporte C135, com 110
toneladas de armamentos, oito caças, oito aviões-tanques, um de
comunicação e um posto aéreo de comando. O general George S. Brown
comandou a operação, da qual participaria uma força-tarefa ultrassecreta
posta em ação na base do Panamá, e estava pronta para, se necessário,
realizar uma intervenção militar. O Pentágono tinha vários planos de
contingência.
Na manhã de 1° de abril, Goulart
reuniu-se com o general Armando de Moraes Âncora e o alto-comando no
Palácio das Laranjeiras, por volta das 11 da manhã, antes de viajar a
Brasília. Havia percebido que nada mais podia fazer. Estava informado – e
os chefes militares também lhe disseram – que os EUA interviriam e que
não havia possibilidade de resistência.
As tropas americanas
desembarcariam no Espírito Santo, a fim de sustentar Minas Gerais, e em
São Paulo. O Brasil seria dividido em três pedaços. Goulart era um homem
forte. Se fosse fraco, teria cedido às pressões e permanecido no
governo. Preferiu, porém, evitar a “sangueira” que ocorreria no Brasil,
sacrificar o povo brasileiro, conforme suas próprias palavras.
Luiz Alberto Moniz Bandeira é cientista político e autor de vários livros sobre o Brasil e sobre a geopolítica mundial