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quarta-feira, 2 de abril de 2014

A intervenção dos EUA no Brasil em 1964

O site da revista Carta Capital publica detalhado texto sobre a intervenção militar americana no Golpé de 1964 com dados irrefutáveis em artigo do cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira...


Política

Especial 50 anos do golpe

Tio Sam dá as cartas

A participação central dos Estados Unidos na articulação civil-militar contra o governo 
por Luiz Alberto Moniz Bandeira 
The Art Archive/National Archives Washington DC
Kennedy
John Kennedy, embebido do espírito da Guerra Fria

Quando jânio Quadros renunciou à Presidência da República em 25 de agosto de 1961 e o governador Leonel Brizola levantou o Rio Grande do Sul, com o apoio do III Exército, a fim de garantir a ascensão ao governo do vice-presidente João Goulart, Richard Nixon, do partido republicano, proclamou ter chegado a hora de intervir militarmente no Brasil. 

O ministro-conselheiro Carlos Alfredo Bernardes, então encarregado de negócios do País em Washington, leu essa declaração, divulgada por uma agência de notícias nos EUA, mas ela não teve maior repercussão. A mídia nativa não a divulgou.

Podia ser bravata de Richard Nixon, ex-vice-presidente de Dwight Eisenhower, derrotado na eleição para a Presidência dos Estados Unidos pelo democrata John Kennedy. Este, investido no governo dos EUA, não iria evidentemente arriscar seu país em uma aventura de repercussões e consequências imprevisíveis somente para atender às pressões internas da direita e de um republicano frustrado como Nixon. Entretanto, desde a administração do presidente Eisenhower, Washington suspeitava das tendências políticas de Goulart, e Kennedy não fez declaração alguma em defesa da manutenção do princípio constitucional quando os ministros militares – marechal Odylio Denys (Guerra), vice-almirante Sylvio Heck (Marinha) e brigadeiro do ar Gabriel Grün Moss – tentaram impedir que Goulart sucedesse a Jânio Quadros. Ele percebia os acontecimentos na América Latina e a crise no Brasil sob o prisma de manobras da Guerra Fria. 

A partir de 1961, talvez antes até, a atenção de Washington voltou-se sobretudo para o Nordeste do Brasil, graças à emergência das Ligas Camponesas e à influência da Revolução Cubana, e a perspectiva de uma intervenção militar entrou na agenda do Pentágono. 

O consulado no Recife, elevado a consulado-geral, tornou-se virtualmente uma estação da CIA, assim como todos os outros consulados nas diversas cidades do País. Houve forte aumento do contingente de servidores e quase todos eram agentes disfarçados sob o manto da administração dos programas da Usaid. Em Pernambuco foi criada a Cooperative League of the United States of America (Clusa), pela qual a CIA, sob a cobertura de determinadas fundações, canalizava os recursos para as atividades de inteligência. 

Como funcionários da Usaid, inúmeros agentes da CIA foram enviados, entre os quais Dan Mitrione (posteriormente executado no Uruguai), com a tarefa de “aperfeiçoar” suas forças policiais, e Lauren J. (Jack) Goin, como assessor de investigação científica. Em 1964, o número de funcionários da embaixada e dos diversos consulados e serviços dos EUA ultrapassava, no Brasil, quatro centenas, conforme a Foreign Service List publicada pelo Departamento de Estado.

Mais de 5 mil ou 6 mil espalhavam-se pelo País. A partir de 1961, o Departamento de Estado começara a solicitar ao Itamaraty vistos para cidadãos americanos, que entravam no Brasil sob os mais diferentes disfarces (religiosos, jornalistas, comerciantes etc.), e a maioria dirigia-se para o Nordeste. Na verdade, tais cidadãos pertenciam às “special forces” (Green Berets – Boinas Verdes), despachados pelo Counter-Intelligence (C-I) Group, que o general Maxwell Taylor comandava, bem como à CIA.

O deputado José Joffily, do PSD, denunciou o fato da tribuna da Câmara Federal em meados de 1962. No princípio de 1963, o jornalista José Frejat, em O Semanário, revelou que mais de 5 mil militares americanos, “fantasiados de civis”, desenvolviam no Nordeste intenso trabalho de espionagem e desagregação, para dividir o território nacional. Se a guerra civil eclodisse, segundo ele, a esquadra do Caribe estaria pronta para apoiar as atividades dos supostos civis americanos, com armas e tropas. Até 1963, o Itamaraty concedera mais de 4 mil vistos e recebera solicitação para mais 3 mil, cujo atendimento os militares nacionalistas brasileiros obstaram.

O enorme número de vistos requeridos pela Embaixada dos Estados Unidos começou em 1961, no governo de Jânio Quadros, o que causou estranheza ao então chanceler Afonso Arinos de Melo Franco. Em nenhuma das edições do Anuário Estatístico do IBGE consta, porém, o número de americanos desembarcados no Brasil naquele ano. Continuou no curso de 1962, após a ascensão de Goulart à Presidência da República. 

Renato Archer, subsecretário de Estado para as Relações Exteriores e ministro interino durante o governo parlamentarista do primeiro-ministro Tancredo Neves, de 1961 a 1962, interpelou o embaixador Lincoln Gordon sobre qual o objetivo de tantos cidadãos dos EUA no Brasil. A resposta do diplomata foi evasiva. Declarou que apenas 2 mil americanos utilizaram a autorização e que os demais vistos ficariam como reservas.

Kennedy considerava a América Latina a área mais perigosa, no contexto da Guerra Fria, e temia a eclosão de uma insurreição no Nordeste por causa das atividades das Ligas Camponesas sob a liderança de Francisco Julião. A presença de tantos americanos no Nordeste inquietou, entretanto, o governador Miguel Arraes, e o deputado Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, agitou publicamente o problema e perguntou no Congresso: “Por que infestam nosso Nordeste, segundo notícias apresentadas à Câmara e baseadas em dados sobre os passaportes, aos milhares, como uma praga maldita? Pois não estão aqui como amigos, mas como inimigos”.

Os americanos enviados ao Brasil eram instruídos e treinados em táticas e técnicas militares e paramilitares para o combate à insurgência, em Fort Bragg, Carolina do Norte, onde até diplomatas e funcionários do Departamento de Estado faziam cursos. Esses militares, conhecidos como boinas verdes, atuavam em cerca de 50 países com a tarefa de combater movimentos de esquerda e reprimir insurreições. 

Se um levante irrompesse no Nordeste, como o Pentágono e a CIA receavam, ou o governo do presidente Goulart virasse decididamente para a esquerda, eles sustentariam focos de resistência, promoveriam guerrilhas ou antiguerrilhas, o que justificaria até o desembarque de marines, “a pedido” ou para “salvar vidas de cidadãos americanos”.

A primeira equipe chegou ao Brasil em 8 de outubro de 1962, após as eleições, integrada pelos representantes da CIA, AID, Usia e chefiada pelo banqueiro William H. Drapper, que manteve diversos contatos com integrantes da comunidade empresarial americana. A refletir suas opiniões, sugeriu ao secretário de Estado Dean Rusk que os EUA recusassem qualquer ajuda financeira ao Brasil, até Goulart aplicar um plano de estabilização monetária satisfatório para o FMI ou tender mais para a esquerda, possibilitando a “polarização das forças políticas domésticas” e o golpe de Estado, com a instauração de forte regime militar de direita, “mais bem orientado para os Estados Unidos”. 

Em 22 de novembro de 1963, dia em que Kennedy foi assassinado, quatro generais americanos – John W. O’Daniel (reformado), Samuel T. Williams (reformado), Lionel McGarr, comandante do Military Assistance Advisory Group (Maag) e Maxwell D. Taylor, chefe Joint Chiefs of Staff (Estado-Maior Conjunto) – chegaram ao Brasil, onde conversaram com seus colegas brasileiros e se reuniram com os governadores Adhemar de Barros e Carlos Lacerda.

A conspiração, estimulada pelo aguçamento das contradições internas, evoluiu da defensiva, como alguns dos seus líderes a apresentavam, para a ofensiva, não rumo a um desfecho pelo golpe de Estado clássico, mas de uma guerra civil, que se arrastaria por quatro, cinco, seis meses ou mais. 

Sua estratégia esteava-se na sublevação de ao menos três estados (Minas Gerais, São Paulo e Guanabara) e envolveria também Espírito Santo, Goiás e Mato Grosso. Os artífices do golpe – entre eles o embaixador Lincoln Gordon e o coronel Vernon Walters, agente da Defence Intelligence Agency (DIA) e cujo codinome era Arma – avaliavam que em nenhum dos estados o levante ocorreria sem reação interna e que as tropas do I Exército, comandadas por oficiais nacionalistas, esmagariam o governo de Lacerda na Guanabara. 

Também contavam com a possibilidade de instalação de um governo de esquerda no Nordeste, a erupção de focos de guerrilhas no Centro e no Sul e a necessidade de enfrentar o que denominavam de V Exército, os trabalhadores, camponeses e estudantes. Em 31 de março, ao começar o levante, o senador Afonso Arinos de Melo Franco informou a Francisco de San Tiago Dantas que Washington não apenas o respaldava como reconheceria a beligerância de Minas Gerais e interviria militarmente no Brasil, em caso de guerra civil. San Tiago Dantas, horrorizado, advertiu-o para a gravidade e as consequências da secessão do Brasil e transmitiu a informação ao presidente Goulart.
Os oficiais brasileiros à frente da conspiração, sobretudo o general Humberto Castello Branco, estavam em estreito entendimento com o coronel Walters e outros agentes. Conforme revelou o general Carlos Luiz Guedes, comandante da 4ª Divisão de Infantaria de Minas Gerais, os chefes do levante acertaram com Walters e um tal agente da CIA chamado Lawrence (possivelmente John O. Lawrence ou Lawrence A. Penn, funcionários da embaixada) que o fornecimento de petróleo e material bélico pelos EUA seria feito por meio do porto de Vitória e da estrada de ferro da Vale do Rio Doce.
Quando o movimento das tropas começou, o cônsul americano em Belo Horizonte, Herbert Okun, compadre de Walters, procurou o governador Magalhães Pinto para reiterar o apoio de seu país. 

No mesmo dia 31 de março, Washington, a pedido do embaixador Gordon, acionou a Operação Brother Sam, composta pelo porta-aviões USS Forrestal, destróieres de apoio, navios repletos de armas e mantimentos, além de quatro petroleiros carregados com 136 mil barris de gasolina, 272 mil de combustível para jatos, 87 mil de combustível para aviões, 35 mil de óleo diesel e 20 mil de querosene.

A fim de atender às necessidades mais urgentes dos golpistas, foram despachados sete aviões de transporte C135, com 110 toneladas de armamentos, oito caças, oito aviões-tanques, um de comunicação e um posto aéreo de comando. O general George S. Brown comandou a operação, da qual participaria uma força-tarefa ultrassecreta posta em ação na base do Panamá, e estava pronta para, se necessário, realizar uma intervenção militar. O Pentágono tinha vários planos de contingência.

Na manhã de 1° de abril, Goulart reuniu-se com o general Armando de Moraes Âncora e o alto-comando no Palácio das Laranjeiras, por volta das 11 da manhã, antes de viajar a Brasília. Havia percebido que nada mais podia fazer. Estava informado – e os chefes militares também lhe disseram – que os EUA interviriam e que não havia possibilidade de resistência. 

As tropas americanas desembarcariam no Espírito Santo, a fim de sustentar Minas Gerais, e em São Paulo. O Brasil seria dividido em três pedaços. Goulart era um homem forte. Se fosse fraco, teria cedido às pressões e permanecido no governo. Preferiu, porém, evitar a “sangueira” que ocorreria no Brasil, sacrificar o povo brasileiro, conforme suas próprias palavras.

Luiz Alberto Moniz Bandeira é cientista político e autor de vários livros sobre o Brasil e sobre a geopolítica mundial